Nietzsche, a construção do Zaratustra
por WebMaster em Almas GêmeasAtualizado em 23/07/2001 16:54:18
A quem Zaratustra procura
"Der Mensch ist ein Seil, geknüpft zwischen Tier und Übermensch - ein Seil über eninem Abgrunde. Ein gefährliches Hinüber, ein gefäherliches Auf-dem-Wege, ein gefährliches Zurücblicken, ein gefärliches Schaudern und Stehenbleiben."
"O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigosos olhar para trás, perigoso tremer e parar." - Nietzsche "Assim falou Zaratustra", 1883
Meditando por dez anos numa caverna no alto de uma montanha, Zaratustra, apenas
na companhia dos seus animais prediletos, a águia e a serpente, determinou-se
baixar à planície. Decidira-se depois daqueles anos de rigor eremita
vir comunicar aos homens a chegada de um novo messias, o Übermensch - o
super-homem, o que dominará o futuro. Assim feito, Zaratustra enumera
a quem sua mensagem se dirige:
Os eleitos por Zaratustra
- os que vivem intensamente, que são indiferentes aos perigos (welche nicht zu lebem wissen) porque são capazes de atravessar de um lado para outro;
- os grandes desdenhosos (der grossen Verachtenden), porque estão sempre tentando chegar a outra margem;
- aos que se sacrificam pela terra (die sich der Erde opfen);
- o curioso, o que quer conhecer (welcher erkennen will);
- quem trabalha e realiza invenções engenhosas (welcher arbeiter und erfinder);
- o que preza a sua própria virtude (sein Tugen liebt);
- aquele que distribui o seu espirito entre os demais (ganz der Geist seiner Tugend sein will);
- o que deseja viver e deixar viver (willen noch leben und nicht mehr leben);
- quem não seja exageradamente virtuosos, nem excessivamente moralista (welcher nicht zu viele Tugenden haben will);
- aquele que não fica a espera de agradecimentos ou recompensas (der nicht Dank haben will);
- o que não trapaceia (ein falscher Spieler);
- o que se orgulha dos seus feitos (welcher goldne Worte seine Taten vorauswirft);
- o combatente do presente (den Gegenwärtigen zugrunde gehen);
- o que desafia e fustiga o seu Deus (welcher seinen Gott züchtig);
- o de alma profunda (dessen Seele tief);
- o de alma trasbordante, que esquece de si mesmo (sich selber vergisst);
- quem tem o espirito e o coração livres (der freien Geistes und freie Herzen ist);
- os vaticinadores, os que prenunciam o relâmpago próximo (dass der Blitz kommt, und gehn als Verkündiger zugrunde), um relâmpago que se chama super-homem (Übermensch).
Porque Zaratustra?
Zaratustra ou Zoroastro, fundador da religião persa, foi um profeta ariano
que por volta de 600 a.C. pregou a existência do Bem e do Mal como entidades
distintas e totalmente antagônicas (até então a crença
geral era de que o mesmo deus era capaz de uma coisa, como a outra). É
o autor dos Gäthäs, cinco hinos que formam a mais antiga e sagrada
parte do Avesta, o livro santo do zoroastrismo. Nietzsche tomou conhecimento
dele provavelmente por intermédio da obra de um erudito da época,
inspirando-se então naquela fantástica personalidade.
O motivo de um ateu assumido como Nietzsche ter lançado mão de um carismático líder religioso do passado, fazendo-o veículo da sua mensagem, deve-se a que o pensador alemão racionalmente e intelectualmente deixara de ser cristão, mas psicologicamente e emocionalmente ainda seguiu tendo a mente de um crente. Afinal, Nietzsche era filho de um pastor luterano. O que igualmente explica o tom de sermão da sua prosa, carregada de parábolas, simbolismos e imagens litúrgicas e locais sagrados, presentes na maioria dos capítulos do "Assim falou Zaratustra". A escolha também tratou-se de uma provocação, pois o Zaratustra ficcional dele retornou a cena exatamente para desfazer o que o real profeta ariano fizera há mais de dois mil e quinhentos anos passados, isto é, instituir a idéia do Bem e do Mal.
O Anticristo
Zaratustra é pois um Anticristo. Ele não veio do deserto como Jesus Cristo, mas sim desceu do alto da montanha, do fundo da caverna, como viu Platão os filósofos emergirem em busca do sol, em busca da vida. Não se dirige aos pobres, ao humildes, aos doentes, aos perdidos e aos fracos, muito menos lhes promete o Reino dos Céus. Seu público é outro. É o dos vencedores, dos afirmadores da vida, os que querem viver o aqui e o agora, tendo a Terra como seu único reino. Arenga aos que desprezam! Desceu à planície para anular o cristianismo.
A sua meta é atingir uma parte especifica da humanidade, os homens superiores (höheren Menschen), a quem Cristo ignorou. Zaratustra é sim um Cristo da elite, pois Nietzsche escreveu o evangelho do super-homem - o que anuncia um novo tempo, uma era em que Deus morreu (dass Gott tot ist!), na qual o Homem se apressa para assumir o poder na totalidade, na qual terá que arcar com as conseqüências morais e éticas de um mundo sem Deus.
Para tanto, ele, o super-homem, operará a transvaloração. Tudo o que o cristianismo estigmatizara - o orgulho, o egoísmo, a riqueza, a vontade de poder, a sensualidade e a nobreza de espírito - deverá voltar a modelar e inspirar a humanidade. A resignação, a docilidade e o servilismo, por sua volta, serão sucedidos pela ação, pela inconformidade e pelo domínio - A lamúria do resignado, cederá lugar ao grito do forte!
Os próprios símbolos que cercam Zaratustra, a águia e a serpente (meinen Adler und meine Schlange), antigas metáforas zoológicas do orgulho, da arrogância e da astúcia, contrapõem-se às do cordeiro e do peixe - os favoritos de Cristo - ícones da mansidão, da quietude e da simplicidade. Se Cristo pregou o Sermão da Montanha para os pobres de espirito, Zaratustra lança sua isca para alçar os destemidos. O seu é um Evangelho dos Fortes. Sua mensagem não é para todos, é para poucos.
Viver perigosamente
"Ich seht nach oben, wenn ihr nach Erhebung verlangt. Und ich sehe hinab, weil ich erhoben bin. Wer von euch kann zugleich lachen und erhoben sein? Wer auf den höchsten Bergen steigt, der lacht über alle Trauer-Spiele und Trauer-Ernste."
"Olhais para o alto quando aspirais elevar-vos. Eu, como já encontro-me acima, olho para baixo/ Quem entre vocês pode estar acima e ao mesmo tempo gargalhar? Aquele que escalou o mais elevado dos montes, ri-se de todas as tristezas encenadas da vida." - Zaratustra - da leitura e da escrita
Enquanto Zaratustra pregava na ágora, a atenção da multidão desviou-se para o alto onde estava um equilibrista numa frágil corda. Um outro, um rival, afobando-se, terminou por precipitar-se no chão, estatelando-se agonizante bem perto do profeta. O desastrado homem, no seu estertor, acredita que agora o diabo o arrastará para o inferno. Confortando-o, Zaratustra diz-lhe: "Amigo - palavra de honra que tudo isso não existe, não há diabo nem inferno. Sua alma ainda há de morrer mais rápido do que seu corpo: nada tema". Quando o trapezista caído ainda se lamenta pela vida que levou "recebendo pancadas e passando fome", o profeta consolou-o respondendo: "Não, você fez do perigo sua profissão, coisa que não é para ser desprezada"( du hast aus der Gefahr deinen Beruf gemacht). Dito isso ele mesmo trata de sepultá-lo com suas próprias mãos.
A cena do profeta tendo em seus braços um morto, é a "pietá" de Nietzsche. Este é o modelo de homem do profeta, o que compete, o corajosos que arrisca, o que diariamente vive na corda bamba, e que morre por isso mesmo, por levar uma vida perigosa (ein gefährliches leben).
Os companheiros de Zaratustra
Como o povo (Volke) não lhe deu ouvidos, Zaratustra, resmungando "que me interessam a praça pública, o populacho e as orelhas cumpridas do populacho?", concluiu então que precisava de companheiros (Gefährten): os "que desejam seguir a si mesmos, para onde quer que eu vá". Afinal ele viera "para separar muitos do rebanho". Que tipo de companhia quer o profeta? Justamente os que "os bons e justos" mais odeiam - o que lhes despedaça os valores, o infrator, o destruidor - porque é esse o criador.
Não são os negligentes nem os retardados que o seguirão, mas sim os inventivos, os que colhem e se divertem, os solitários e todos aqueles unidos pela solidão, interessados em escutar coisas inauditas - a marcha do profeta será a marcha deles. Assim é que sua oração dirige-se para os que estão atacados pela "Grande Náusea"(der grossen Ekel), o tédio de quem vive numa época em que o antigo deus morreu, mas que não existe ainda nenhum outro novo deus. Zaratustra veio para afastar deles a sombra dos deuses antigos que ainda escondem-se atrás das nuvens do presente. Veio para mostrar-lhes a verdadeira face da natureza, chegou par torná-la humana, para desmagizá-la.
O que irritava sobremodo o profeta era o último homem (letzter Mensch), um teimoso, "inabalável como um pulga", que, segundo Heidegger, não queria "se desfazer da sua depreciável maneira de ser". Ao insistir em viver de acordo com os valores desaparecidos, em prender-se a um ídolo que já se fora, esse cabeça-dura continuava a freqüentar o santuário do deus caído em ruínas. Ali, nada mais achando nele, o estulto agachava-se, arrastava-se no pó, em meio aos cacos, atrás das cobras e dos sapos para adorá-los.
A transformação do homem
"Was gross ist am Menschen, das ist, dass er eine Brücke und kein Zweck ist: was geliebt werden kann am Menschen , das ist, dass er ein Übergang und ein Untergang ist"
"A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso." - F.Nietzsche - Assim falou Zaratustra, I,4
Num primeiro momento da história espiritual do homem, pelo menos o de espírito sadio, ele não passa de um camelo, que, como o desgraçado animal, apenas ajoelha-se e agradece quando lhe dão uma boa carga. Carrega pelo deserto as culpas por ter nascido. Na sua humilde corcova avoluma-se as penas do mundo, sobrecarregado pelas regras morais e pelas imposições que lhe fazem, que lhe dizem - tu deves (Du-sollst!)! Porém, no deserto, isolado, dá-se uma transformação. O camelo vira um leão. É o espirito que, liberto, quer ser "o senhor do seu próprio deserto". Agora é ele quem, rugindo desafiante, responde - eu quero! (Ich will!). Se bem que o leão não consiga ainda criar os novos valores, ele pelo menos, assentado na sua força e vigor, sacode para fora a canga que afligia o pobre camelo. Dá-se então a derradeira transformação - o leão vira criança. Sim porque a criança é esquecimento, é um novo começo, é o embrião do super-homem que, ao crescer e desenvolver-se, "quer conseguir o seu mundo".
O camelo (Kamele) O leão (Löwe) A criança (Kind)
O espirito do homem na sua época religiosa e cordata, conforme com seu
destino de animal de carga, submetido ao grande dragão. - Encontra-se
sob o imperativo do "Tu deves!" A emergência do espirito de
rebeldia. A insubordinação contra os valores tradicionais e contra
as imposições morais e convencionais. - Afirma-se através
do "Eu quero!" A nova era que nasce. O tudo por fazer que se descortina
numa nova situação, num mundo novo que se livrou do passado opressivo.
- "Ele alcançará!"
Os inimigos do profeta
Zaratustra é um celebrante da carnalidade, um pregador da vida vivida, da sensualidade, do prazer de dominar, ou do simples gozo em existir. É o grito do instinto sufocado! Por conseqüência, seus inimigos são os que detestam a vida, os "acusadores da vida" (Ankläger des Lebens), os que reprimem e condenam a volúpia, os que dizem que as pulsões humanas são artes do demônio, os que pregam o Outro Mundo, como os sacerdotes e os moralistas, que insistem em fazer com que o homem envergonhe-se do seu próprio corpo e das suas sensações, chamando-as inumanas, imundas e pecadoras.
O profeta quer o diferente, o que se distingue, o que se vangloria, o altivo com justa razão, o indivíduo soberano e viril, não as massas que "trazem mau olhado à Terra". Suas palavras não devem ser "apanhadas por patas de carneiros". Logo todos os democratas, os pregadores da igualdade e correlatos, são seus adversários, os odiados inimigos. Pois o mundo "gira ao redor dos inventores de valores novos" (die Erfinder von neuen Werten dreht sich die Welt), da Personalidade Magnífica e não do homem comum, que vive discursando - "somos todos iguais perante Deus ". Ora, como deus morreu o homem superior ressuscitou da sua sepultura. É para ele que a luz do futuro brilha.
É tudo um só mundo
Não há para o profeta dois mundos, o de cá e o de lá, nem corpo separado da alma, nem bem nem mal. Tudo é uma coisa só. Carne é espirito, a terra também é céu, o mal também é o bem. O homem imaginou haver um além porque ele sonha, e no seu sonho - "vapor colorido diante dos olhos" - lhe aparecem fantasmas dos mortos e das coisas passadas, por isso ele, iludido, concebeu um Outro Mundo. Ingrato, ao invés de exultar com a existência recebida, percorre os céus com os olhos supersticiosos atrás de uma estrela, acreditando ir parar ao seu lado no futuro.
Seguidor de Heráclito - que via o Cosmo um produto do agón, da luta -, Zaratustra assegurava que toda a batalha a ser travada é uma bem-vinda guerra terrestre na qual o super-homem (expurgando ou afastando de si os sentimentos caritativos e piedosos, afirmando-se sobre si mesmo com os valores que ele mesmo criou) se lançará na conquista do devir. Mas, adverte, antes do super-homem atingir esse futuro, haverá o crescimento do deserto - uma grande ameaça ao oásis onde se homiziava o homem superior.
O filho de Zaratustra
No final do canto de Zaratustra (Parte IV - o sinal), depois do profeta ter dispensado os grandes dignatários (rei, imperador e o papa), não identificando neles os sinais do super-homem, ele projeta aquele que advirá. A sua nobreza não é resultado de títulos, nem de sangue. O Übermensch é o que irá superar o homem e, para tanto, já expurgou de si toda a fraqueza e vilania tão comum aos humanos. Ele não tem pejo em querer vingar-se, nem se envergonha em ter ódio, sabe que se almeja a alegria também terá que suportar o sofrimento. Mas nem os homens superiores que o profeta encontrou pelo caminho o satisfazem.
"Pois bem!", disse ele, "estes homens superiores adormecem enquanto eu estou desperto. Não são os meus verdadeiros companheiros". O viajante (der Wanderer) após ter percorrido uma longa peregrinação, na qual esgrimiu-se em mil encontros e outros tantos percalços, recolheu-se de volta ao seu ermitério. Sentado na pedra em frente a gruta ele pede que cantem "Outra Vez", porque ele afirmava o Eterno Retorno das coisas. Tudo o que aconteceu nos remotos tempos voltaria a ocorrer - a história é um circulo não uma ascensão! Palavras como honra e nobreza certamente voltarão a reluzir.
A hora de Zaratustra
Com seus cabelos embranquecidos eriçados pelos vôos dos pássaros, o sábio sentiu que o leão estendido aos seus pés recostara a cabeçorra dourada no seu colo, lambendo as lágrimas que escorriam pelas suas mãos. O vidente estava exausto. Afinal ele era um montanhista (ein Bergsteiger) que detestava as planícies. Meditando, Zaratustra foi tomado de súbita emoção. Sentiu-se maduro porque que soara a sua hora, a sua alvorada - o Grande Meio-Dia chegara. O anúncio, o sinal de que o super-homem estava por vir fez com que ele, lépido, aspirando somente a sua obra, deixasse a sua gruta. Assim como o alvorecer sai por detrás das montanhas escuras, ele saiu para ir receber o seu filho.
Dies ist mein Morgen, mein Tag hebt an: berauf nun, berauf, du grosser Mittag!
- Also spracht Zarathustra, und verliess seine Höhle, glühen und stark,
wie eine Morgensonne, die aus dunklen Bergen Kommt.
Leituras fundamentais
Zaratustra: tragédia nietzschiana, de Roberto Machado (Jorge Zahar Editor, RJ, 1997, Editora, 175 págs.)
O "Zaratustra" de Nietzsche, de Pierre Hébert-Suffrin (Jorge Zahar Editor, RJ, 1991, 161 págs.)
Traduções
Nietzsche é um autor reconhecidamente difícil de ser traduzido, não só por escrever num alemão clássico, extremamente refinado, mas por razões que lhe são próprias. Ele é, como o leitor não se cansa de ver no "Assim falou Zaratustra", um poeta e um filósofo, fazendo que o seu tradutor se embarace ao tentar reproduzir o som harmonioso da lira, ou o pio preciso e mais frio da coruja. Além disso a prosa filosófica alemã naturalmente vocacionada à metafísica, à abstração pura, apresenta complexidades diversas para qualquer tradutor de qualquer idioma. Em cada palavra poderá haver implicações outras, duplas, triplas, quadruplas, ... inúmeras.
Em português existem as conhecidas traduções de Mario da Silva (Círculo do Livro, SP), que é uma das mais antigas (relançada pela Editora da Civilização Brasileira, RJ), a de Eduardo Nunes Fonseca (da Hemus - Editora, SP) e, finalmente, uma bem mais recente, feita por Pietro Nassetti (Editora Martin Claret, SP) que conseguiu fazer da sua tradução do "Zaratustra" uma excelente leitura. Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (Editora Martin Claret, São Paulo, 1999, 255 págs., tradução de Pietro Nassetti).