Agora que voltei para casa - Capítulo 24
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 22/10/2004 15:17:04
O que me exaltava era a confirmação de que realmente o corpo pode transpor certos limites que nós mesmos nos colocamos, por medo ou comodismo. Isso eu já tinha experimentado inúmeras vezes, em meus vinte anos de aprendizado da dor. O doce prêmio desse longo aprendizado era poder estar no meio de mulheres muito mais jovens e saudáveis do que eu, e sentir que podíamos compartilhar das mesmas experiências.
Eu estava me sentindo completamente apaziguada porque essa mulher maravilhosa estava dizendo, de maneira feminina e usando outras técnicas, exatamente as mesmas coisas que meu terapeuta estivera me transmitindo durante aqueles sete anos. Senti uma enorme gratidão por ele, por ter ajudado meu corpo a recuperar as condições de poder estar ali e, principalmente, por ter-me passado os ensinamentos que me permitiam assimilar tudo aquilo que me estava sendo oferecido. Era como se agora todas as peças do mosaico se encaixassem.
Sentia por aquela mulher uma admiração sem limites, que me levava a obedecer a todas as suas instruções com um fervor religioso. Cheguei até a me indignar com o pouco caso e a falta de sensibilidade com que minhas companheiras desrespeitavam as regras que a situação nos impunha. Era como se só eu pudesse aquilatar a importância de cada uma daquelas normas.
Senti muito aguda a dor da diferença que sempre sentira entre mentalidades, hábitos, gostos, que há mais de trinta anos às vezes me faziam sentir estrangeira no país em que morava. Até aí aprendera a simplesmente constatar essas diferenças e com elas conviver, como uma fatalidade. Nunca tivera a coragem de declarar publicamente que, se eu tinha escolhido viver neste país, depois de minha tentativa de voltar para minha terra natal, era porque reconhecia a supremacia de suas qualidades, que fazem dele um lugar único no mundo, exatamente pelas características de seu povo. Mas isso não impedia que, justamente por não ter nascido aqui, eu enxergasse o outro lado da moeda, que aos meus olhos eram certas características que às vezes faziam com que este mesmo povo deixasse de assumir suas responsabilidades com seriedade, quando o momento o exigia.
Pela primeira vez, porém, sentia a necessidade urgente de pôr tudo aquilo para fora, e foi o que fiz numa fala muito emocionada, entrecortada pelas lágrimas, que me custou um esforço comparável a um parto. De fato, me sentia como se tivesse tido um novo nascimento.
Na hora da despedida, quando abracei a mestra, não podia acreditar no que estava ouvindo, sussurrado por ela em meu ouvido: “ (Você tem sido minha mulher favorita no grupo) You were my favorite woman in the group(*)”. Essa declaração soava tanto mais doce quanto completamente inesperada. Voltava a me sentir privilegiada, escolhida, abençoada por Deus.
Em contrapartida, a volta a meu mundo de sempre nunca fora tão desoladora. Sentia-me como uma drogada privada de droga. Meu primeiro impulso foi de procurar me informar como poderia ir até a Índia, para não perder o elo mágico que tinha se criado entre aquele mundo e eu. Sabia que as dificuldades eram muitas, e na prática se revelaram intrasponíveis, pelo menos naquela ocasião.
Aos poucos fui me dando conta de que tinha sido acometida de uma espécie de febre, e que me tornara tão irracional como só os apaixonados podem ser. Tudo foi voltando às suas reais dimensões, e me convenci de que era melhor esperar a volta ao Brasil daquela mulher, prevista para o ano seguinte, antes de tomar qualquer decisão.
Incapaz de aceitar a rotina, deixei-me seduzir por uma experiência dentro da linha xamânica, que no início me parecia extremamente atraente. Esta enésima iniciação serviu-me para aprender mais algumas coisas sobre mim mesma. A principal é de que ainda tinha dentro de mim uma criança extremamente zangada por ter se sentido amordaçada, e que sempre esteve em busca de seus verdadeiros pais espirituais.
Finalmente, pela boca de um jovem xamã americano em transe, ouvi o que deveria me libertar para sempre de minha busca incessante pela cura: “Chega de ser manipulada por essas velhas mulheres. Chega de bater de porta em porta para encontrar sua cura. Você, minha velha, velha amiga que veio de muito longe, você tem a cura dentro de si”.
Na verdade, não estava aprendendo nada de novo. Isso era o que meu terapeuta tinha me ensinado desde o começo. Então, porque continuava me sentindo infeliz, insatisfeita, incompleta? Porque um ser humano precisa que outro ser humano, seja ele quem for, o justifique, o avalize? A velha questão voltava como uma dor renitente. Não me bastava saber de tudo isso, precisava compartilhar minhas descobertas com alguém. Mas onde encontrar quem tivesse a suficiente paciência, sensibilidade, compaixão para nele depositar um tesouro tão precioso?
Mais uma vez a figura de meu terapeuta surgia como a do único interlocutor possível. Mas como abater a muralha de registros diferentes em que nossos diálogos, agora bem mais espaçados, tinham se transformado?
Eu chegava na sessão com a impressão de que tinha um monte de coisas urgentes e importantes para serem ditas. Mal abria a boca, lá vinha ele com uma enxurrada de dados novos, estonteantes, hipnotizantes, estratosféricos, que faziam minhas pobres experiências parecerem insignificantes. Ainda por cima, tinha de me submeter à deliciosa, humilhante tortura de um abraço de faz-de-conta. Decididamente, assim não podia mais continuar. Não era possível que ele não percebesse o que estava acontecendo comigo. Onde estavam todos seus poderes mirabolantes, sua capacidade de ler em mim como num livro aberto? Porque, então, continuava como se nada fosse? Essa era a charada mais difícil de decifrar.
Comecei a dar corpo à fantasia de que talvez ele estivesse esperando uma iniciativa minha para aprofundar de verdade nossos encontros. Comecei a ler certas frases suas como um incentivo a não me reprimir, a não me condicionar às regras estreitas da sociedade. Sim, eu podia até ter superado dentro de mim os traumas que me impediam de deixar um homem se aproximar, mas teria também de passar pela suprema humilhação de me oferecer abertamente? Isso repugnava com todas as forças a minhas raízes mais atávicas. Faria, isso também, parte da terapia? Com o coração aos pulos, tremendo como se estivesse diante de uma banca examinadora, cada vez me preparava para jogar uma frase audaciosa, um inequívoco convite. Regularmente, batia em retirada, esperando melhor oportunidade.