Agora que voltei para casa - Capítulo 26
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 05/11/2004 15:10:38
Mais surpresa fico quando descubro que precisamos queimar numa fogueira preparada só para isso as cartas que escrevi com tanta veracidade. Que pena, nunca mais vou conseguir reproduzir aquele mesmo sentimento. Somos tão apegados ao que é nosso, que não queremos abrir mão nem daquilo que nos provoca tristeza.
De repente, num dos intervalos em que somos deixados sozinhos a meditar, olhando para cima, vejo uma esplêndida borboleta azul que insiste em se exibir para mim. Uma borboleta é a coisa mais comum, ainda mais num país tropical e no meio de uma vegetação tão luxuriante. Ela insiste em ficar à minha volta, e aí, pela primeira vez, me dou conta de que nunca parei o suficiente para meditar sobre a vida de uma borboleta. Existe algo de mais perfeito e mais único? Será que há duas borboletas idênticas? A delicadeza de suas asas, a fragilidade, o desenho incrível, de uma perfeição chinesa, as cores só comparáveis às dos vitrais das catedrais góticas, ou aos reflexos que posso captar num certo ângulo de meus cristais: pela primeira vez me dou conta da intrigante condição das borboletas.
Com certeza a maioria delas nasce e morre sem que um só olhar humano possa usufruir de seu esplendor. Isso as torna menos bonitas? Claro que não, e há alguma coisa de comoventemente trágico nessas vidas desperdiçadas, em tanta beleza ignorada. Certamente isso não as impede de serem felizes no curtíssimo lapso de tempo que duram suas vidas.
Também pode ser que eu ignore tudo da importância das borboletas, pode ser que num nível mais sutil, num plano mais elevado que sou incapaz de enxergar, elas tenham um papel importantíssimo a desempenhar, inacessível à minha pobre percepção humana. De qualquer forma, esta borboleta cumpriu uma missão de valor inestimável para mim. Me fez ver que eu, uma pessoa que se julga esclarecida, experiente, sofrida, tenho tudo a aprender de uma simples borboleta.
O que eu aprendi dela, é que sou exatamente como ela, só que não posso me conformar em passar despercebida. Sou uma borboleta azul vaidosa e despeitada, porque acho que as pessoas à minha volta me julgam pelas aparências, sem se preocupar em ver o que existe na essência.
Como saindo de uma lâmpada mágica, vejo explodir diante de mim um a um todos meus traumas. Vejo o ridículo de estar tentando disfarçar, há pelo menos vinte anos, que a vida me deixou marcas que não aceito e que gostaria que ninguém visse. Sinto o quanto me pesa, o quanto me oprime, esse esforço titânico de apagar os defeitos, de só exaltar as qualidades.
Sinto o quanto me fez mal ter sido obrigada a me conformar em ter perdido o sorriso de que tanto me orgulhava, por ter aceito sem piscar a experiência da biocibernética. Acho injusto ter tido a fisionomia alterada pelas mexidas nos dentes que o aparelho provocou. Fico indignada quando penso que médicos irresponsáveis alteraram para sempre meu modo de pisar, quando operaram meus pés, sem se preocupar em me alertar sobre as conseqüências (que, provavelmente, nem eles mesmos sabiam prever).
Assim como descobri, há alguns anos, que sempre senti uma angústia no peito, uma dificuldade de respirar, porque simplesmente ficava retendo a respiração diante do menor problema, e senti um enorme alívio quando me permiti respirar mais fundo, assim agora descubro que preciso pôr para fora toda essa raiva reprimida, esse rancor contra quem não consegue adivinhar minhas dificuldades.
São essas as marcas que mais me assustam no meu rosto, que me fazem desconhecida para mim mesma. São as mesmas marcas que vejo no rosto de certas pessoas idosas, nas bocas cerradas e nos olhares duros. Eu, que vivi prematuramente minha velhice, sei o que significa cada um daqueles sinais.
Mas que importância tem tudo isso diante da lição que esta frágil borboleta está me dando? A vida é curta, não há tempo para tantos melindres, vaidades, orgulhos estéreis. Não há tempo a perder. É preciso passar adiante a lição da borboleta, é essa a mensagem que esta nova experiência está me trazendo.
Sinto-me finalmente apaziguada, justificada, em todos os sentidos da palavra. Olho para meus companheiros e sinto uma ternura nova, uma necessidade enorme de compartilhar.
Entramos no salão. Essa é justamente a hora em que somos convidados a compartilhar, espontaneamente, as experiências que estamos vivenciando com nossos companheiros de aventura. Os mais falantes são sempre os primeiros a se colocar, e precisam ser lembrados de que o tempo é limitado. Os mais tímidos precisam ser cutucados para que aprendam como é bom se soltar. Eu tenho um sinal só meu que fica piscando o tempo todo até que eu me decida a falar. É uma taquicardia que só se acalma quando finalmente resolvo abrir a boca.
Dessa vez, trata-se de expor um último pedaço da própria intimidade. A tarefa era: “Diga numa única frase o que você gostaria que fosse gravado em sua lápide, à guisa de epitáfio”. O meu é o seguinte: “Aqui jaz uma borboleta azul estropiada”. Nunca pensei que isso fosse causar tamanha hilaridade. Nossa querida coordenadora faz cara de espanto, e pede-me para explicar. Aproveito o clima de descontração para contar, aos borbotões, tudo o que acabo de descobrir sobre mim mesma, a partir da história da borboleta.
Quando termino de falar, acontece uma coisa inédita. O rapaz que ajuda a coordenadora a montar as instalações, e que nunca participa das discussões porque não faz propriamente parte do nosso grupo, me agradece pelo que acabo de dizer, porque diz ter sido tocado muito fundo num problema pessoal. Diz que ele também se tornou expert em disfarçar um problema físico, a ponto de quase ninguém perceber, mas que agora, ouvindo meu relato, se dá conta de quanto essa atitude mobiliza suas energias.
Isso para mim é duplamente surpreendente porque, além de admirar muito sua habilidade, sempre representou aos meus olhos o protótipo do rapaz fisicamente perfeito.
Num dos momentos em que somos deixados sozinhos a perambular pelas redondezas, vou até a vizinha cachoeira para meditar perto da água. De repente, vejo uma borboleta pequena, lindíssima, parada sobre uma pedra. Aproximo-me e fico a olhá-la longamente. Ela, como se me compreendesse, fica a se deixar olhar, imóvel. Faço um gesto brusco e ela levanta vôo, para pousar novamente um pouco mais longe. Nosso diálogo recomeça, até que de novo eu provoque sua saída. Esse ballet dura um bom tempo, e é como se uma espécie de pacto fosse selado entre nós duas.