Fragmentos da Sociedade Virtual
por Acid em EspiritualidadeAtualizado em 15/08/2008 11:52:00
Teu coração é dividido em tantas partes quantas são as tuas preocupações. Cada cogitação leva o seu pedaço. Pensas que Deus há de derramar suas graças em um vaso partido?
Nem permitas que teu corpo ande por um lado e teu coração por outro, sem ver as coisas que fazes. Antes, serve a Deus com este corpo mortal (Teresa de Ávila)
Andar nu, com os cabelos emaranhados, jejuar, cobrir-se de pó e cinzas, deitar sobre pregos - nenhuma dessas coisas pode purificar um homem se sua mente não é pura (Buda)
Ao que o Senhor lhe disse: Ora vós, os fariseus, limpais o exterior do corpo e do prato; mas o vosso interior do corpo e do prato está cheio de rapina e maldade. Loucos! Quem fez o exterior, não fez também o interior? Dai, porém, de esmola o que está dentro do copo e do prato, e eis que todas as coisas vos serão limpas (Lucas 11:39-41)
Servir a Deus não é amarrar bombas em seu corpo e explodir quem não for da sua religião (esse conceito é relativamente novo e é uma deturpação, no caso do islamismo). Nem tentar converter o máximo de pessoas. Nem bater no peito e botar no carro "Orgulho de ser (ponha sua religião aqui)". Servir a Deus é primeiro reconhecer Deus no outro, e servir a Ele na figura do PRÓXIMO. Jesus não poderia ter sido mais claro do que isso, e os grandes nomes do cristianismo também foram grandes servidores. Infelizmente no mundo de hoje a pessoa que se doa e respeita ao próximo é vista como um babaca, um tolo. Isso porque criamos uma cultura onde as raposas é que tomam conta do galinheiro, e "aprendemos" a pensar: ei, isso que é esperteza!
Tenho passado minhas férias imerso num jogo online chamado Lineage II. Nunca gostei de MMORPGs, acho um saco ficar (Se eu quisesse bater papo, eu ficava no Mirc ou no MSN.) batendo papo(*) dentro de um jogo, ou ficar (Se essa fosse minha idéia de diversão, eu provavelmente sairia por aí chutando gatinhos. Um jogo tem de ser desafiador, tem de ter luta pela vida, e um objetivo claro.) batendo em bichos fracos(*) o dia todo pra subir de nível, mas esse me cativou por conta do visual, com uma (os Koreanos provavelmente sucederão os japoneses na influência cultural da Ásia, anotem isso.) direção de arte(*) magnífica e por um sistema de comércio interessantíssimo - que lembra uma feira livre - que aguçou minhas ambições. De fato, tenho passado mais tempo (O mais interessante é que, mesmo no jogo, tenho aprendido lições dolorosas a respeito da ganância e ambição desmedida. Toda vez que tento controlar, de alguma forma, o comércio com práticas desonestas, imediatamente minha mente se turva e acabo me lascando financeiramente, fazendo coisas que nunca faria em sã consciência. Interessante que tenho levado essas surras da vida desde pequeno. `Alguéns´ tem me mantido com rédea curta...) comprando e vendendo(*) do que matando monstros.
Mas o que me fez mencionar o jogo são as relações sociais que são estabelecidas nele. Como um micromundo, tem-se uma liberdade incrível tanto pra o bem, como pra o mal. Como disse antes, não queria bater papo, nem conhecer pessoas. Mas, ao entrar no jogo, nos primeiro dias, tive um ótimo reforço moral que foi dado pelos veteranos. Gente que eu não conhecia me ajudou a lutar contra monstros mais fortes, deu dicas, e uma até deu dinheiro (MUITO dinheiro) apenas por nos mostrarmos simpáticos numa conversa. Eram pessoas interessadas em tornar aquele mundo virtual e efêmero um lugar melhor de se "viver". Senti-me como um rato de laboratório sendo recompensado com um queijo, mas o reforço positivo FUNCIONOU, porque eu acabei levando-o sem querer pra vida "real" dias depois, ao entabular uma conversa com uma vendedora, onde consegui desconto num refrigerante que ficou praticamente de graça, simplesmente por eu me mostrar simpático e comunicativo (e nem era minha intenção usar isso pra minha vantagem).
Então vemos essa sociedade virtual sendo construída num mundo com poucas regras. Podem-se usar seus "poderes" pro bem ou para o mal. Se você usa pro bem, só tem vantagens, claro, pela teia social, dinheiro e pontos de experiência que o lutar contra monstros em grupo dão. Mas, se você usa pro mal, ao matar outros participantes, seu nome fica vermelho, indicando que você é um PK (Player Killer). Você não ganha nada, fica visado, depois de 6 mortes pode vir a perder itens se for morto, mas o que mais me impressiona é que NUNCA deixa de haver PKs no jogo. Há muitas pessoas que matam os outros e a única recompensa é o PRAZER. Não sei se é uma compensação por ser um fraco na vida real, ou uma válvula de escape contra os pais ou irmãos, mas esse sadismo existe e há até uma certa tolerância por parte de muitos jogadores. Tipo "se eu não mexer com ele, talvez ele não mexa comigo". Por outro lado, há pessoas heróicas, que põem em risco suas vidas para caçar e matar os PKs, impedindo que eles bloqueiem uma rua e cometam uma chacina. Por sinal, a minha motivação nesse jogo é ficar forte o suficiente pra caçar PKs, já que eles me mataram muitas vezes na covardia e não quero que eles destruam a experiência do jogo.É interessantíssimo observar um mundo quase sem leis, onde a sociedade ainda está se formando. Após isso passei a ver com mais respeito nossas conquistas como sociedade, como as nossas leis, escritas ou não, que fazem com que tenhamos um terreno mais ou menos firme onde nos apoiarmos (respeito à fila, à propriedade alheia, à dignidade).
No jogo resolvemos as disputas na base da diplomacia, na porrada ou na intimidação, porque não há polícia, não há judiciário, o que incentiva imediatamente a adoção da "lei do cão" (com diplomacia você não consegue muitos avanços). E o que eu vi foram extremos de virtude e perversão, salpicados aqui e ali por certa apatia que favorece ambos. Talvez estejamos caminhando pra isso em nossa sociedade "real". Talvez tenhamos um confronto entre "santos" e "demônios". O requinte de crueldade dos fora-da-lei é cada vez maior, enquanto o coração dos medianamente bons esfria a cada dia. Nesse caldo fervente, sobrevêm os virtuosos, que nunca pretenderam chamar a atenção, mas chamam porque isso é o "diferente", o "estranho". Quando a proliferação dos programas policiais, as capas dos jornais, a valorização da violência incentiva a ver um mundo mergulhado no medo e na intolerância, quando as religiões - que deviam ser a âncora das virtudes - resolvem brigar entre si e surgem coisas bizarras como a "Liberdade Atuante", que pretende reprogramar o cérebro para ser "livre" das influências da sociedade (lembrei de Laranja Mecânica, não sei porque...).
Talvez este seja o plano. Quando tudo o que for crença ou fé se abalar, quando todos os caminhos apontarem pra o tudo ou nada, os que perseverarem não pela fé, não pela crença, não pela recompensa espiritual ou kármica, mas sim por terem nascido com isso, por possuírem a fibra moral necessária para prosseguir no caminho da Virtude mesmo quando não há recompensa alguma, esses serão os "Super-Homens" do qual Zaratustra (Nietzsche) falava.
Agora vou voltar pro meu jogo e só Deus sabe quando teremos outro post...