Jung: Tertuliano e Orígenes
por Acid em EspiritualidadeAtualizado em 13/03/2008 17:40:20
Desde que existe o mundo histórico, sempre houve psicologia; mas a psicologia objetiva é de recente data. As obras dos antigos estão cheias de psicologia, mas pouca coisa pode ser qualificada como psicológico-objetiva. Isto se deve, em grande parte, ao caráter peculiar do relacionamento das pessoas na época antiga e medieval. Os antigos atribuíam ao seu semelhante um valor apenas biológico, por assim dizer; isto transparece de seus costumes e da legislação. A Idade Média fazia uma valorização metafísica do ser humano, e isto se baseando na idéia do valor imperecível da alma.
Devemos ter em mente também as diferenças de tipos quando recordamos a longa e perigosa luta que a Igreja travou contra o gnosticismo logo nos inícios de sua história. Devido à orientação, sobretudo prática do cristianismo primitivo, o intelectual pouco valor tinha, a não ser que desse vazão a seus instintos belicosos numa apologética polêmica. A "norma da fé" (regula fidei) era muito rígida e não permitia liberdade de movimentos. Além disso, era pobre em conteúdo intelectual positivo. Constava de poucas idéias e estas, apesar de serem de grande valor prático, eram um obstáculo decisivo para o pensamento. O tipo intelectual era mais atingido negativamente pelo "sacrifício do intelecto" (sacrificium intellectus) do que o tipo sentimento. Por isso é compreensível que o conteúdo intelectual bem superior da gnose - que, à luz de nosso desenvolvimento mental moderno não perdeu, mas ganhou muito em valor - fizesse o maior apelo possível ao intelectual dentro da Igreja. A gnose apresentava para ele todas as tentações do mundo. Sobretudo o docetismo deu grande trabalho à Igreja com sua afirmação de que Cristo possuía apenas um corpo aparente e que toda a sua existência terrena e sua paixão haviam sido mera aparência. Nesta afirmação, predomina o elemento puramente intelectual sobre o sentimento humano. Talvez a luta com a gnose seja mais bem compreendida se tomarmos os dois grandes expoentes que se impuseram não só por serem Padres da Igreja, mas também por sua personalidade: Tertuliano e Orígenes, que foram contemporâneos ao final do século II. Schultz escreve sobre eles: "Um organismo é capaz de ingerir alimento e assimilá-lo quase totalmente à sua natureza; outro o elimina de igual modo, com sinais de resistência apaixonada. Assim, Orígenes, por um lado, e Tertuliano, por outro, reagiram de forma diametralmente oposta. Sua reação à gnose não é característica apenas das duas personalidades e de sua visão do mundo, mas é de fundamental importância também para a posição da gnose na vida espiritual e nas correntes religiosas daquela época".
Tertuliano nasceu em Cartago, por volta de 160 dC. Era pagão e levou vida dissoluta em sua cidade natal até aos 35 anos, quando se converteu ao Cristianismo. É autor de numerosos escritos onde transparece bem seu caráter, que demonstra seu zelo nobre e sem par, seu fogo, seu temperamento apaixonado e a profundeza de sua concepção religiosa. É fanático e de uma tendenciosidade genial quando se trata de verdade reconhecida, intolerante e de natureza belicosa sem igual, um lutador implacável que só admite a vitória após ver aniquilado completamente o adversário; sua linguagem era espada flamejante, manejada com terrível maestria. Foi o criador do latim eclesiástico que perdurou por mil anos. Cunhou a terminologia da jovem Igreja. "Tendo assumido um ponto de vista, levava-o às últimas conseqüências, como que aguilhoado por uma legião de demônios, mesmo que a razão já não estivesse a seu lado e todo ordenamento racional se lhe apresentasse em farrapos". A paixão de seu pensamento era tão inexorável que se afastava sempre de novo daquilo por que havia dado o sangue de seu coração. Por isso, sua ética era de uma austeridade rude. Mandava procurar o martírio em vez de fugir dele, não permitia segundas núpcias e exigia que as pessoas do sexo feminino se cobrissem completamente. Combatia com desconsideração fanática a gnose que era exatamente uma paixão do pensamento e do conhecimento e, com ela, a ciência e filosofia que pouco diferiam dela. Atribuiu-se a ele a grandiosa confissão: "Creio porque é absurdo" (credo quia absurdum est). Parece que isto não corresponde bem à verdade histórica e que só teria dito: "E morreu o Filho de Deus, isto é perfeitamente crível porque é absurdo. E sepultado ressuscitou; isto é certo porque é impossível".
Graças à agudeza de seu espírito, percebeu o lado vulnerável do saber filosófico e gnóstico e o repudiou com desprezo. Apoiou-se, então, no testemunho de seu próprio mundo interior, nos fatos de sua própria intimidade que se identificavam com sua fé. Estruturou estes fatos, tornando-se assim o criador das conexões conceituais que ainda hoje constituem a base do sistema católico. O fato íntimo irracional que para ele era de natureza essencialmente dinâmica foi o princípio e fundamento perante o mundo e perante a ciência e filosofia racionais ou de validade geral. Transcrevo suas palavras:
"...Mas eu não a invoco, ó alma, treinada nas escolas, familiarizada com bibliotecas, alimentada e saciada nas academias e nos salões cheios de colunas de Atenas, propagadora de sabedoria. Não! Eu gostaria de falar com você, ó alma, como admiravelmente simples e inculta, inábil e inexperiente, exatamente como você é para aqueles que nada mais possuem do que a você, exatamente como você surge das alamedas, das esquinas e das oficinas. É precisamente de sua ignorância que eu preciso."
A automutilação realizada por Tertuliano no sacrificium intellectus levou-o a um reconhecimento sem reservas da realidade irracional interior, o verdadeiro fundamento de sua fé. A necessidade do processo religioso que sentia em si, ele a sintetizou na fórmula incomparável "alma naturalmente cristã" (anima naturaliter christiana). Com o sacrificium intellectus sucumbem para ele também a filosofia e a ciência, conseqüentemente também a gnose.
Quando a Igreja foi levada a um compromisso sempre maior com as massas, revoltou-se contra isso e tornou-se adepto do profeta Montano, um extático, que seguia o princípio da negação absoluta do mundo e da espiritualização total. Em panfletos violentos começou a atacar a política do papa Calixto I. Isto e mais o montanismo o levaram mais ou menos para fora da Igreja. Segundo um informe de Agostinho, desentendeu-se depois também com o montanismo e fundou sua própria seita.Tertuliano é exemplo clássico de pensador introvertido. Sua inteligência brilhante, altamente desenvolvida, tinha o flanco aberto para uma inegável sensualidade. O processo psicológico de desenvolvimento, que designamos como sendo o cristão, levou-o ao sacrifício, à amputação da função mais valiosa, cuja idéia mítica está contida no grande e exemplar símbolo do sacrifício do Filho de Deus. Seu órgão mais valioso era precisamente o intelecto e o conhecimento nítido que dele se originava. Devido ao sacrificium intellectus fechava-se para ele o caminho para um desenvolvimento puramente intelectual e viu-se, assim, forçado a reconhecer o dinamismo irracional de sua alma como fundamento de seu ser. A intelectualidade da gnose, o caráter especificamente racional que ela imprimia nos fenômenos dinâmicos da alma devem ter sido odiosos para ele, pois foi este o caminho que teve de abandonar para reconhecer o princípio do sentimento.
Em Orígenes temos exatamente o oposto de Tertuliano. Nasceu em Alexandria por volta de 185 dC. Seu pai foi um mártir cristão. Ele, porém, nasceu naquela atmosfera mental ímpar onde se misturavam as idéias do Oriente e do Ocidente. Absorvia avidamente tudo o que fosse digno de conhecer e aceitava tudo o que o riquíssimo mundo intelectual de Alexandria podia oferecer: cristão, judeu, helênico ou egípcio. Já antes de 211 dC ocorreu sua autocastração, cujos motivos podemos adivinhar, mas, historicamente, permanecem desconhecidos. Exercia grande influência pessoal e tinha um discurso cativante. Estava sempre cercado de discípulos e de grande número de estenógrafos que recolhiam as preciosas palavras que saíam da boca do venerado mestre. Foi autor muito prolífico e tornou-se grande professor. Andava à procura de manuscritos bíblicos antigos e obteve grandes méritos como crítico de textos. "Era um grande sábio, aliás o único verdadeiro sábio que a Igreja primitiva teve", disse Harnack. Em total contraste com Tertuliano, Orígenes não se fechou à influência do gnosticismo; ao contrário, até mesmo o canalizou, de forma atenuada, para o seio da Igreja; ao menos foi esta a sua intenção. Na verdade, a julgar por seu pensamento e pontos de vista fundamentais, foi quase um gnóstico cristão. Sua posição perante a fé e o conhecimento foi descrita por Harnack com as seguintes palavras, psicologicamente significativas: "A Bíblia é igualmente necessária para ambos: os crentes recebem dela os fatos e mandamentos de que precisam, enquanto os gnósticos decifram a partir dela pensamentos e reúnem forças que os levam à contemplação e ao amor de Deus - e assim todas as coisas materiais parecem amalgamadas pela interpretação espiritual, num cosmos de idéias, até que tudo, finalmente, seja superado e abandonado como simples degrau, só permanecendo isto: a relação abençoada e duradoura da alma criada por Deus e para Deus (amor et visio)."
Em Orígenes se interpenetram num todo pacífico e harmonioso os dois mundos: a filosofia grega neoplatônica e a gnose, por um lado, e as idéias cristãs, por outro. Mas esta tolerância ousada e perspicaz levou-o também a ser condenado pela Igreja. Na verdade, a condenação final só ocorreu postumamente, após, já idoso, haver sofrido torturas na perseguição de Décio e ter falecido em conseqüência delas. Em 399, o papa Anastácio I pronunciou a condenação e, em 543, foram anatematizados seus ensinamentos por um sínodo convocado por Justiniano, e este anátema foi confirmado por concílios ulteriores.
Orígenes é exemplo clássico do tipo extrovertido. Sua orientação básica era o objeto; isto se mostrava em sua preocupação escrupulosa por fatos objetivos e suas condições, bem como na formulação daquele princípio supremo: "amor e visão de Deus" (amor et visio Dei). O processo cristão de desenvolvimento encontrou em Orígenes um tipo cujo fundamento último era a relação com o objeto - uma relação que sempre se expressou simbolicamente na sexualidade, e explica o fato de haver certas teorias hoje que também reduzem todas as funções psíquicas essenciais à sexualidade. A castração foi, portanto, expressão adequada do sacrifício da função mais valiosa. É bem característico que Tertuliano quisesse realizar o sacrifício do intelecto e Orígenes fosse levado ao sacrifício do falo, porque o processo cristão exigia completa abolição do vínculo sensual com o objeto. Em outras palavras, exigia o sacrifício da função mais valiosa, da possessão mais amada, do instinto mais forte. Biologicamente considerado, o sacrifício serve aos interesses da domesticação. Mas, psicologicamente, abre uma porta para novas possibilidades de desenvolvimento espiritual, mediante a dissolução de laços antigos. Tertuliano sacrificou o intelecto porque este o amarrava fortemente ao mundano. Lutou contra a gnose porque representava para ele um desvio para a intelectualidade que envolvia, ao mesmo tempo, sensualidade. Examinado este fato, vemos que o gnosticismo estava, na verdade, dividido em duas escolas: uma, que lutava por uma espiritualidade que excedia todos os limites; outra, que se perdia num anarquismo ético, num libertinismo absoluto que não se detinha diante de nenhuma luxúria ou devassidão, por mais atroz e perversa. Pela automutilação, Orígenes sacrificou seu vínculo sensual com o mundo. Para ele, evidentemente, o perigo específico não era o intelecto, mas o sentimento e a sensação que o ligavam ao objeto. Pela castração, livrou-se da sensualidade que estava acoplada ao gnosticismo e pôde entregar-se, sem medo, à riqueza do pensamento gnóstico, ao passo que Tertuliano, pelo sacrifício do intelecto, afastou-se da gnose, mas alcançou uma profundidade de sentimento religioso que falta em Orígenes. Diz Schultz: "Supera Orígenes porque vivia, no mais profundo de seu espírito, cada uma de suas palavras e porque não era, como acontecia com Orígenes, o entendimento que o arrastava, mas o coração. Por outro lado, fica atrás de Orígenes porque, sendo o mais apaixonado dos pensadores, esteve a ponto de recusar o saber como tal e converter sua luta contra a gnose em luta contra o pensar humano pura e simplesmente".
Vemos aqui como, no processo cristão, o tipo original se inverteu completamente: Tertuliano, o aguçado pensador, torna-se o homem do sentimento, enquanto Orígenes se transforma no sábio e se perde na intelectualidade. Naturalmente é fácil inverter, também logicamente, a coisa e dizer que Tertuliano foi sempre o homem do sentimento e Orígenes, o intelectual. Abstraindo do fato de que a diferença de tipo não foi, com isso, eliminada, mas persiste, antes como depois, a concepção inversa, porém, não explica por que Tertuliano via no intelecto seu pior inimigo e Orígenes, na sexualidade.
O sacrifício que Tertuliano e Orígenes fizeram é drástico, drástico demais para o nosso gosto, mas correspondeu ao espírito de sua época, que era muito concretista. Foi desse espírito que a gnose derivou a presunção de que suas visões eram simplesmente reais ou, ao menos, diretamente ligadas à realidade. E Tertuliano colocou o fato de seu sentimento como algo válido objetivamente.
Fonte: Resumo do capítulo do livro "Tipos psicológicos", de Carl Gustav Jung (1921)