O `EU´ no Budismo e o Livro dos Mortos - Parte 2
por Acid em EspiritualidadeAtualizado em 02/04/2009 15:52:19
O LIVRO DOS MORTOS
Por anos, desde que foi publicado pela primeira vez, o (Nome original do Livro Tibetano dos Mortos.) Bardo Thodol(*) tem sido meu companheiro constante, e dele tirei não apenas muitas idéias estimulantes e descobertas, mas também muitos insights fundamentais… Sua filosofia contém a quintessência do criticismo psicológico budista; e, como tal, pode-se verdadeiramente dizer que é de uma superioridade sem par. (...)
Não apenas as "coléricas", mas também as deidades "pacíficas" são concebidas como projeções da psique humana, uma idéia que parece demasiado óbvia ao esclarecido europeu, porque faz com que se lembre de suas próprias simplificações banais. Mas, embora o europeu possa facilmente explicar essas divindades como sendo projeções, ele seria absolutamente incapaz de defini-las como reais ao mesmo tempo. O Bardo Thodol consegue fazer isso, porque, devido às suas mais essenciais premissas metafísicas, ele tem o europeu esclarecido e o ignorante, ambos, em desvantagem. A idéia sempre presente, a presunção calada do Bardo Thodol, é o caráter anti-nominal de toda afirmação metafísica, e também a idéia da diferença qualitativa dos vários níveis de consciência e das realidades metafísicas condicionadas por elas. O pano de fundo deste livro incomum não é o europeu "um ou outro-ou", mas uma afirmação magnífica, "ambos-e". Esta afirmação pode parecer censurável ao filósofo ocidental, pois o ocidente adora a clareza e não a ambigüidade; conseqüentemente, um filósofo se agarra à situação "Deus é", enquanto outro se agarra tão ardentemente quanto o primeiro à negação, "Deus não é".
(Carl Gustav Jung)
No Budismo, acredita-se que os hábitos de uma pessoa em vida podem afetar o seu renascimento. Se alguém tem o hábito de recitar o nome do Buda Amitabha, sua mente tem grandes chances de estar com Amitabha. Se essa pessoa se depara com um acidente e se lembra de recitar o nome do Buda Amitabha no momento de sua morte, esse gesto pode ajudá-la a renascer na Terra Pura da Bem-aventurança. Assim sendo, o Livro Tibetano dos Mortos não é, como muitos pensam, somente um (Não é (como o Lama Govinda nos lembra) um livro dos mortos. É um livro do morrer; o que quer dizer que é um livro dos vivos; é um livro sobre a vida e sobre como viver. As versões comumente encontradas no Brasil só traduziram (e mal) um ou dois capítulos do livro original. Apenas em 2005 foi publicada a versão completa (a do link no começo do post), com uma tradução mais precisa, mas ainda só está disponível em inglês.) guia para renascer(*) num corpo humano. Ele é um guia para a LIBERTAÇÃO do Samsara ou, no mínimo, uma evolução de consciência que leve esse "falso eu" a um reino/dimensão superior. A volta em corpo humano é considerada uma falha, mas uma falha menor, haja visto que, se você condicionar sua mente a agir como um político brasileiro, pode voltar como animal irracional ou mesmo uma pedra.
Hábitos são inicialmente teias de aranha, depois, fios de arame
(Provérbio Chinês)
O Buda descreveu a prática de seus ensinamentos como "ir contra a corrente". A luz firme do estado desperto revela o quanto somos empurrados no fluxo dos condicionamentos passados e hábitos. No momento em que decidimos parar e olhar o que está acontecendo (como um nadador repentinamente mudando seu curso para nadar em outro sentido), nos encontramos sendo golpeados por correntes poderosas que nunca nem suspeitávamos existir - justamente porque até esse momento estávamos vivendo totalmente sob seu comando. (Stephen Batchelor; "The Awakening of the West")
Com toda essa doutrina envolvendo a desidentificação com o "eu" e o conhecimento dos meandros da morte (todos no livro dos mortos) os budistas mais avançados se tornaram famosos por se "desligarem" pra sempre de seus corpos quando desejam, ou seja, uma morte programada. O primeiro teria sido o próprio Buda (embora as más línguas digam que foi por envenenamento com carne de porco estragada). Mas a tradição budista é farta de relatos assim, como o do mestre Ch’an Te-pu, da Dinastia Sung: Certo dia, ele juntou os discípulos ao seu redor e disse: "Estou prestes a deixar vocês. Embora eu esteja curioso sobre o tipo de arranjos funerários que vocês irão preparar para mim, não estou certo se terei tempo de voltar para apreciar suas oferendas. Sendo assim, em vez de nós nos preocuparmos uns com os outros depois da minha partida, porque não gastamos um tempo juntos e desfrutemos das oferendas agora?" Os discípulos sentiram que seu mestre estava agindo estranhamente, mas não ousaram desobedecer. Prepararam o serviço funerário e prestaram homenagem ao seu mestre pensando que se tratava de um jogo. No dia seguinte, Te-pu de fato morreu. Alguns de vocês podem pensar que é muito estranho alguém preparar uma cerimônia funerária antes de morrer. Mas, na realidade, isso é bastante bem-humorado e prático. Um velho ditado chinês capta bem esse sentimento: "Oferecer uma gota d’água para uma pessoa enquanto ela está viva é melhor do que oferecer a ela fontes d’água após ela ter partido desse mundo". É melhor respeitarmos nossos pais enquanto estão vivos do que dar a eles um funeral requintado quando morrerem.
Ou seja, apesar do não-eu, do desapego para com a morte, o Budismo não é niilista, e foca numa significação da vida (a VIDA nunca é negada) em favor do próximo. Tanto que há um título budista que é o Bodhisattva, um ser que atingiu a capacidade suprema de iluminar-se e abandonar o Samsara (ou seja, alcançar o Nirvana) mas não o faz, por pura compaixão pelos seres, e então retorna a este reino, ajudando as pessoas a alcançarem a libertação (Jesus, por exemplo).
No Budismo Tibetano há uma relação (Na mitologia grega os deuses da morte e do sono (Thanatos e Morpheus, respectivamente) são irmãos.) estreita(*) entre a morte e o sono. Em ambos os casos, os laços que prendem esses agregados se afrouxam e é possível alcançar outros níveis, reinos ou mundos, e continuar trilhando o Dharma em busca do Nirvana. Ainda assim, o budismo não difere o estado do sonho da vigília: Nos dois casos se vive uma ilusão. Para auxiliar neste processo de clareamento da consciência durante o sono, existe o Yoga do sono (Dream Yoga, ou Milam), técnica tibetana baseada no Yoga Nidra:
As Upanishads referem-se a quatro estados de consciência: vigília (jagrat), sonho (svapna), sono (sushupti) e o "quarto estado" (turiyavastha). A Maitri Upanishad descreve-os, respectivamente, assim:
"O estado em que se vê com os olhos, o estado em que é possível mover-se em sonhos, aquele em que se dorme profundamente e o que está além do sono profundo. Esses são os quatro estados. Desses quatro, o quarto é superior aos demais."
O quarto estado é o sono profundo, sem sonhos. É o único estado onde a mente (chitta) não está ativa, ou seja, não há qualquer conteúdo psico-mental. O sono é então uma experiência de inexistência não-consciente. Pode-se por isso dizer que no sono profundo a consciência do ego (ahamkara) se dissolve temporariamente. Quando isso acontece, e no sono predomina o equilíbrio (sattva), experimenta-se, ainda que de forma limitada, a felicidade suprema (ananda). Isso explica porque, depois de uma noite de sono profundo, é comum a pessoa acordar com uma sensação de leveza e bem-estar, e explica também porque tantos buscam refugiar-se dos seus problemas no sono. No entanto, para a mente não-treinada, não existe discernimento (viveka) neste processo. E, para que a libertação seja alcançada, é imprescindível que se esteja consciente do processo. Não sendo assim, permanece-se na ignorância existencial (avidya), que assalta o ser humano não-iluminado. O Yoga Nidra busca exatamente trazer à consciência esse processo, de você ser dono do seu próprio sono e atingir níveis de relaxamento que podem ir muito (Por isso que o Dalai Lama disse que `Dormir é a melhor meditação´) além(*) do conseguido comumente na meditação.
Outra prática natural que simula a perda do "eu" é o orgasmo. Os franceses o denominam la petite mort (a pequena morte) por conta disso, e Freud -claro- estudou o assunto no seu livro "Além do princípio do prazer". Ele conjugou as pulsões sexuais e as pulsões do ego -anteriormente concebidas como antagônicas- como pulsão de vida (Eros, a tendência a manter e ampliar a vida adquirida) e pulsão de morte (Thanatos, que ele definiu como "princípio de Nirvana"). As duas apresentam semelhanças na tendência à integração ao Todo e diferenças na forma de realização da integração; na pulsão de vida cada elemento conserva sua individualidade, e na pulsão de morte perdem-se os limites diferenciadores das individualidades. Esta característica de impelir o organismo para a integração ao Todo é um aspecto fundamental do que Freud chama de "compulsão à repetição", onde a repetição está a serviço do prazer, mesmo que o resultado imediato seja um desprazer. Pulsão de vida e pulsão de morte seriam as duas faces de uma mesma moeda em constante rodopio, sem que jamais pudéssemos distinguir uma da outra. Embora a sexualidade seja pulsão de vida, o gozo seria pulsão de morte. A idéia de iluminação e (O único problema do sexo no budismo não é o sexo em si, mas o DESEJO pelo sexo (ou por qualquer coisa).) sexo(*) misturados não é estranha ao Budismo, haja visto que existe na literatura chinesa e japonesa o "Buda do Sexo", que "ilumina" suas parceiras durante o ato sexual.
Freud também fala de uma "lei biológica da atenção", onde o "eu" tem uma tendência inata a ocupar percepções, ou seja, identificar-se com o que capta do exterior, introjetar elementos externos para o interno. Mas, para que os estímulos externos sejam percebidos, é necessário não apenas que tais estímulos alcancem o organismo, mas que as representações constituídas por eles sejam também ocupadas pelo "eu". Pelo menos para mim, pareceu similar ao processo de identificação com o "eu" no budismo.
Pode-se ainda experimentar a dissociação do "eu" através do efeito das drogas (legalizadas ou não), mas Heath Ledger, Elvis, Jimmy Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin provavelmente não recomendariam hoje esse método. Até porque, usando da química para alterar seu organismo, você não mantém o equilíbrio (sattva) nem o discernimento (viveka). É como botar uma criança de 4 anos pra jogar Mario 64: ela vai se divertir, talvez passe das primeiras fases, mas nunca vai explorar o verdadeiro potencial do jogo como ele foi planejado pelo deus Miyamoto. Em 1964 os pesquisadores Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert (os 3 com PHD) resolveram conduzir pesquisas sérias com o LSD na Universidade de Harvard. Eles descobriram que o Livro Tibetano dos Mortos se prestava a "guiar" uma viagem no ácido com maior " (Não há garantia de segurança para o uso de drogas. Devo lembrar que, apesar de meu nick ser Acid, não endosso o uso de LSD nem nenhum outro tipo de droga ou substância que altere o funcionamento do cérebro (até mesmo Tylenol pode fazer mal, em caso de dengue! Ou seja, mexer com a química do corpo é algo muito, muito delicado e só deve ser usado em última instância).) segurança(*)" e de maneira "positiva", e assim lançaram um livro intitulado A experiência psicodélica: Um manual baseado no Livro Tibetano dos Mortos, que NÃO É uma tradução do livro, mas algo baseado (como o título já diz) nele. John Lennon se inspirou nesse livro pra compor a música Tomorrow Never Knows.
Referência: Sleeping, Dreaming, and Dying: An Exploration of Consciousness with the Dalai Lama;