O hábito de sofrer
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 16/09/2005 12:00:36
Os ensinamentos budistas estão sempre nos alertando para um único ponto: o sofrimento não existe por si mesmo, não está no mundo real ou em nossa própria vida, mas na maneira como a interpretamos. Portanto, eles nos alertam para o fato de que em nosso mundo subjetivo cultivamos constantemente o hábito arraigado de sofrer!
Podemos nos sentir até mesmo idiotas e ridículos quando descobrimos que não precisaríamos sofrer por algo. Mas de nada adianta nos autojulgarmos; aliás, apenas atrasa e dificulta nosso processo de evolução interna. Todos nós já sabemos, por experiência própria, que mudar um padrão de pensamento requer paciência e constante dedicação!
O budismo nos incentiva a romper o hábito de sofrer por meio da consciência da conexão kármica existente entre causas e efeitos. Este é um processo profundo, lento e gradual. Ao ouvir estas três palavras, podemos até mesmo pensar que o processo de evolução interior é sempre denso e pesado. No entanto, nem sempre é assim.
Nos momentos em que temos “pequenos estados de iluminação”, ganhamos muita energia e bem-estar. Mas, também é verdade que encarar o sofrimento de frente nos leva, pelo menos numa primeira fase, a sentir que passamos a vida “evitando sentir, sem saber porque”. São dores guardadas em nossa memória como traumas, vivências inacabadas que pedem soluções definitivas.
O processo de autoconhecimento é doloroso e ao mesmo tempo extremamente gratificante. Quanto maior a nossa vontade e determinação em conhecer a natureza daquilo que causa o sofrimento, mais envolvidos nos encontraremos em nosso processo de evolução interna. A esta altura já não medimos mais forças nem sofrimentos. Ao passo que nos envolvemos no processo de autocura, perdemos o medo de sofrer a inevitável dor do hábito de sofrer!
Isto é, não medimos mais a nossa qualidade de vida pela dor, mas sim pelo prazer da consciência: de ver claramente. Assim como relato em meu pequeno livro “Oráculo I – Lung Ten” (Ed.Gaia): “Certa vez estávamos aflitos porque Lama Gangchen Rinpoche precisava colocar um remédio, que ia arder muito, em uma ferida que tinha no pé. Mas ele disse: ´A dor não é problema, o importante é o resultado`.”
Nas últimas semanas, estudamos os seis reinos ou estados psicológicos descritos na Roda da Vida. Agora iremos estudar os 12 Elos: as causas e condições interdependentes que nos mantém presos a esses estados mentais: o hábito de sofrer.
Estes ensinamentos, transmitidos por Buddha, estão descritos numa série de 12 imagens que se encontram ao redor das imagens que descrevem os Seis Reinos.
Os 12 Elos Interdependentes podem ser vistos como estágios no ciclo interminável de vida e morte dos seres humanos, ao mesmo tempo em que revelam a dinâmica de nascimento, vida e morte dos próprios estados mentais. São eles:
1. Ignorância do apego a si mesmo
2. Condicionamento: ações que criam renascimentos
3. Consciência
4. Nome e a forma
5. Poder dos seis sentidos
6. Contato
7. Sensação - Sentimento
8. Avidez
9. Necessidade
10. Existência
11. Renascimento
12. Envelhecer, adoecer e morrer
1. Ignorância do apego a si mesmo
Segundo Buddha, este é o elo final e original da cadeia que forma o hábito de sofrer. O fim e o início de todo e qualquer sofrimento. Neste sentido, este ciclo é interminável. Ele poderá apenas ser rompido quando pudermos “relaxar a mente no espaço absoluto da vacuidade”, isto é, quando conseguirmos ver a realidade direta dos fenômenos sem nos deixar levar pelo hábito de dar concretude às nossas projeções mentais.
Naturalmente, temos dificuldade em entender o que este Elo significa. Afinal, ele está descrevendo a causa original do sofrimento que estamos vivenciando neste exato momento! Se fôssemos capazes de compreender e realizar este ensinamento neste mesmo instante, já teríamos quebrado a cadeia de nosso sofrimento: estaríamos iluminados!
Por isso, não devemos nos desesperar quando compreendemos um ensinamento. O importante é mantermos o interesse e o compromisso com nossa evolução interna. Aliás, os Lamas costumam nos alertar que nunca devemos nos pressionar neste caminho. Saber estar à vontade com nossa própria mente e fazer apenas o que for possível a cada momento é uma regra importante para cultivarmos nossa sanidade mental. É uma ironia terrível nos levarmos à loucura porque nos dedicamos ao caminho espiritual.
No primeiro Elo, há a imagem de uma senhora cega, andando sem rumo, tateando o caminho com uma bengala. Assim, como ela, nós também vivemos na escuridão. A ignorância nos impede de enxergar a realidade com clareza.
A Ignorância é uma mente auto-referente, isto é, como se existíssemos apenas por nós mesmos. Ignorar significa estar alheio à verdade absoluta de que nada existe por si só, mas sim que tudo existe por sua natureza interdependente. Neste sentido, tudo está em constante mudança, nada é permanente.
Podemos compreender intelectualmente esta verdade mas, enquanto nossa mente funcionar pela dinâmica destes 12 elos, não conseguiremos trazer esta compreensão para o nosso modo de ver a vida. Continuaremos presos ao hábito de sofrer. Portanto, o antídoto para a ignorância está em cultivar a sabedoria de reconhecer a interdependência entre todos e tudo.
Manter a mente alerta ao fato de que tudo está interligado, nos leva a observar atentamente nossas ações de corpo, palavra e mente. Neste sentido, ganhamos sabedoria ao passo que deixarmos de ser inconseqüentes. O caminho da autocura é o caminho da responsabilidade pessoal. Neste sentido, para superarmos a ignorância e romper o hábito de sofrer, podemos começar por observar o efeito que geramos em nosso ambiente com aquilo que dizem.
Última atualização em 21/8/6