O Reino Humano: a ilusória busca por posse e controle
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 22/07/2005 11:45:42
Semana passada iniciamos um estudo budista sobre os seis reinos de existência, por meio dos quais a realidade é vivida de acordo com uma visão kármica específica. Ao conhecer cada reino poderemos conhecer como entramos e saímos das tramas de nossos conflitos internos.
Segundo o budismo, estes seis reinos existem tanto como esferas de renascimento, quanto como padrões de atitudes emocionais que condicionam nosso sofrimento. São hábitos mentais que definem nosso ser e nossa visão de mundo.
A iconografia budista tibetana Mahayana descreve os seis reinos na imagem da () Roda da Vida(*). As ilustrações deste diagrama, divididas em quatro círculos, representam simbolicamente:
(a) os doze elos da existência interdependente (a cadeia de ação e reação que determina nossa atual situação existencial),
(b) os seis estados psicológicos que caracterizam a existência samsárica,
(c) os dois caminhos como causa e efeito de pensamentos e ações positivas e negativas e
(d) os três venenos-raiz da mente (apego, raiva e ignorância).
Esta seqüência de círculos é sustentada pela terrível figura mitológica Yama, o Senhor da Morte. Sua presença simboliza a impermanência, isto é, o fato de que nenhum ser vivo pode escapar de suas garras. Entretanto, no canto superior, do lado de fora da roda, a figura de um Buda flutuando no céu e apontando para a lua cheia indica que os seus ensinamentos irão indicar o caminho para a liberação do infindável ciclo de morte e renascimentos involuntários.
Portanto, ao conhecer os ensinamentos contidos na Roda da Vida, iremos aprender a nos libertar dos esquemas inibidores da evolução espiritual, que nos mantém presos aos padrões de sofrimento. Como vimos no texto anterior, “A visão Kármica”, cada reino é marcado pela contaminação de uma forte emoção negativa que produz uma percepção particular da realidade.
O reino dos deuses é marcado pela preguiça e pelo orgulho; o reino dos semi-deuses, pela inveja e pelos ciúmes; o reino dos humanos, pelo desejo de posse; o reino dos animais é marcado pelo medo e pela ignorância; o reino dos fantasmas famintos pela avidez e, finalmente, o reino do infernos pela raiva e impaciência.
Martin Lowenthal escreve, em seu livro “O Coração compassivo” (Ed. Pensamento): “A preocupação de cada esfera (reino) é uma contração emocional - um recuo ou fuga diante da mudança, em vez de uma abertura para a vida e para a experiência do ’agora’.[...] Ao longo do dia, podemos sentir emoções e preocupações de todas as esferas, desde a sensação de perigo característica da esfera animal até o orgulho da esfera do deus. Entretanto, vivemos mais numa dada esfera, ou conjunto particular de esferas, o que nos atribui um estilo especial de desequilíbrio ou fixação que constitui a nossa base domiciliar”.
Vamos começar por analisar o Reino Humano. Antes de tudo, vale a pena saber que este é o único reino onde o ser é capaz de evoluir espiritualmente, pois a dor vivida nesta esfera não é tão profunda como nos reinos inferiores ou a auto-indulgência não é tão alienadora nos reino superiores. No entanto, nem tudo no Reino Humano é oportuno...
O reino humano é marcado pelo desejo da conquista e domínio ilimitados: uma tentativa constante de evitar a dor da perda. Como seres humanos, pretendemos ter a sensação de posse e controle absoluto. No entanto, a dor do nascimento, da velhice, da doença e da morte é inevitável. Não poder controlá-la nos deixa indignados e frustrados.
A dor no nascimento é semelhante à dor de estar involuntariamente separados de quem amamos, enquanto que a dor da velhice representa a dor de se estar junto de quem não se quer. Já a dor da doença expressa o sofrimento de não se obter o que se deseja; finalmente, a dor da morte revela o sofrimento por não conseguirmos manter nossas posses materiais, status e até mesmo nossa auto-imagem.
Enquanto nossos esforços em vida estiverem voltados para a tentativa compulsiva de “saber quem somos” a partir de nossas posses, estaremos constantemente buscando saber mais, dando nome às coisas, desenvolvendo conceitos e atribuindo-lhes significados na esperança ilusória de conquistar segurança e domínio sobre uma realidade de natureza impermanente, portanto incontrolável.
Não há nada de errado em buscar mais conhecimento se este nos ajudar a ampliar a visão de nosso potencial espiritual. O problema é que a nossa própria busca de conhecimento está contaminada por uma ilusória idéia de posse. Enquanto quisermos consumir a vida como um supermercado de posses materiais e emocionais, estaremos transformando as pessoas e as situações em dados, preços e oportunidades. Na ansiedade de evitar a dor da insatisfação, caímos em nosso vício de controlar e possuir: tentativas ineficazes, porém com promessas ilusoriamente convincentes.
A vida é para ser vivida como uma oportunidade de evolução, e não como uma mercadoria que podemos comprar e vender conforme os altos e baixos de nosso humor emocional.
No Reino Humano, possuímos a capacidade de usar o intelecto de forma positiva. Se soubermos diferenciar os fenômenos autocurativos dos autodestrutivos, poderemos romper a cadeia kármica de mortes e renascimentos involuntários. Para tanto, será preciso renunciar ao hábito de sofrer. Atenção: não renunciamos à vida, mas à visão kármica de olhá-la como um meio de obter posses.
A vida é um meio de obter a evolução espiritual.
Assim como nos alerta Lama Ganchen Rinpoche em seu livro “Autocuta Tântrica III” (Ed. Gaia): “As ilusões e as emoções negativas tornam nossa mente turbulenta e descontrolada. Precisamos verificar pessoalmente se isso é realmente verdade. Temos seis venenos-raiz (a ignorância, a raiva, o orgulho, o apego, os pontos de vista equivocados e a dúvida) e vinte ilusões secundárias que se desenvolvem na mente como conseqüência dos registros negativos em nosso disco do espaço interno. Esses venenos e ilusões dão origem ao exército de oitenta e quatro mil bactérias mentais negativas, ou energias psico-físicas negativas.
Quando nossos sentidos encontram um objeto, o programa das ilusões começa a rodar. Coisas bonitas dão origem ao apego, coisas feias fazem surgir a aversão e coisas neutras dão origem à ignorância. Além disso, misturar-se a más companhias e absorver informações negativas de livros, televisão, filmes, rádio e jornais também dá origem a emoções negativas. Por exemplo, assistir filmes violentos faz nossa raiva e agressividade aumentarem, e filmes eróticos aumentam nosso desejo e apego.Estamos profundamente habituados a essas respostas emocionais negativas que, por esse motivo, surgem já quase espontaneamente a partir de causas muito pequenas. Desperdiçamos tempo demais nos preocupando obsessivamente com nossos problemas emocionais. Motivados por nossas ilusões mentais, cometemos várias ações positivas e negativas, que mais tarde servirão apenas como causas de mais sofrimento samsárico e escuridão interna.
Precisamos desenvolver um profundo desejo de abandonar as ilusões - nossos verdadeiros inimigos - e de curar as ações contaminadas que são a causa de nosso samsara pessoal. Precisamos estar determinados a praticar o caminho da Autocura em direção à libertação”.
Uma vez que decidimos renunciar ao sofrimento, precisamos nos empenhar na intensa tarefa de subjugá-lo. Podemos começar pela prática de parar e refletir e então, por meio da atenção clara e consciente, ajustar o propósito de estarmos vivos.
A capacidade de fazer auto-observação é a chave para a interrupção dos padrões de pensamento habituais em todas as esferas. Ela cria um espaço no qual podemos contemplar e questionar aquilo que estamos fazendo e os modos pelos quais geramos sofrimento. Uma vez que nos tornamos testemunhos de nossa própria evolução, desenvolveremos a sabedoria discriminativa.
Martin Lowenthal escreve: “Quando fazemos uso da pausa, do senso de humor e da pesquisa para desenvolver a abertura, nos soltamos das amarras do pensamento e apenas vivemos o momento. Mantemo-nos presentes com essa experiência direta, o que desenvolve a nossa presença sem as distorções dos nossos conceitos e auto-imagens.
Na esfera humana, buscamos afirmar e garantir a nossa esperada presença através do tempo - e continuamos a nos mostrar. Com o medo de que forças além de nosso controle ameacem a perpetuidade da nossa presença, tentamos captar a experiência e preservá-la, congelando-a em conceitos e lembranças. O apego a esses construtos mentais afasta-nos da experiência direta de cada momento.
Quando reivindicamos nossa capacidade natural de estar atentos, experimentamos diretamente cada momento. Percebemos que não apenas estamos presentes, mas presenciamos cada instante. Quando nos deixamos ser apenas o que somos e experimentamos esse ato de presenciar, um novo tipo de compreensão se abre para nós, proveniente antes da percepção do que do pensamento.
Sentimos a tranqüilidade que procurávamos na esfera humana, quando, enganosamente, tentávamos nos apoderar da experiência. Sobrevém-nos um sentimento de integração, não a uma coisa, lugar ou grupo, mas pura e simplesmente, à vida”.
Quando desistimos de controlar a vida, expiramos aliviados. Reconhecemos que podemos nos soltar e relaxar, pois é justamente a pressa em viver a vida que nos impede de vivê-la!