Quando se Está Pronto para Morrer
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 13/01/2005 17:06:26
Em maio de 1997, conheci Beto por indicação de seu médico oncologista. Beto era juiz, 37 anos, casado, com dois filhos pequenos, tinha um olhar gentil e generoso. Devido a um câncer no intestino grosso, com metástase nos pulmões e no fígado, fez muitas sessões de quimioterapia no decorrer dos seus dois últimos anos de vida que, a princípio, deram bons resultados clínicos.
Beto morava numa cidade distante quatro horas de carro de São Paulo. Começamos as nossas sessões a cada quinze dias, no meu consultório, quando ele vinha à capital para as sessões de quimioterapia. Os primeiros meses foram dedicados a aceitar o caos interior provocado pela doença, assim como a reconhecer as diversas situações inacabadas em sua vida afetiva. Conforme Beto conseguia expressar suas transformações internas no seu meio familiar, sentia-se aliviado. Confiante na sua crescente capacidade de lidar com o seu estado vulnerável de saúde, dedicava-se cada vez mais ao desenvolvimento de sua espiritualidade.
Aos poucos superava sua forte tendência em reprimir a dor emocional e mostrava-se mais disposto a revelar seus sentimentos para sua família. Estava determinado a abandonar sua habitual atitude solitária. Assim, Beto passou a compartilhar sua dor ao mesmo tempo que aprendia a respeitar suas necessidades emocionais.
Para algumas pessoas essa mudança de atitude era muito perturbadora. Estavam acostumados com o silêncio submisso de Beto. Mas ele não se deixou abalar com a pressão daqueles que não aceitavam sua mudança. Continuou a se expressar abertamente. A consciência de que seu futuro tinha um tempo limitado desencadeou sua determinação em ser ele mesmo. Esse processo ajudou-o também a liberar-se dos ressentimentos passados.
Era evidente como sua vida se tornava cada vez mais significativa ao aceitar sua morte como um fato próximo. Estava determinado a viver positivamente qualquer momento. Dizia que se negasse sua morte estaria distanciando-se de sua vida no presente. Beto havia compreendido a realidade transitória da natureza humana. Sua aceitação não era racional, era autêntica, uma realização interior resultante de seu contínuo trabalho consigo mesmo.
Em outubro, Beto e eu participamos de um workshop com Lama Gangchen Rimpoche em São Paulo. Ele sentiu-se profundamente grato pela experiência, pois agora o que mais lhe interessava era o seu contato com a espiritualidade. Estar além das suas percepções imediatas para abandonar o hábito de lutar contra a idéia de morrer. Ao final de uma sessão, ao sair de um relaxamento profundo, ele me disse: “Saí do absolutismo para ganhar paz e espaço interior”.
Muitas pessoas contam que nunca se sentiram tão vivas quanto no momento em que estão morrendo, afirma o psicólogo norte-americano Stephen Levine no seu livro (Quem morre? Anchor Books Editions ) Who Dies?(*) Escreve: “Talvez seja porque finalmente a indagação do que é real dê sentido à vida dessas pessoas; e quando a vida tem sentido, ela se torna vibrante. A busca central passa a ser ‘quem sou eu?’. A energia da vida, então, não é mais usada para constringir a realidade dentro de velhos modelos (...) Tornaram-se realmente vivos justamente porque não procuram mais fazer com que a vida seja o que eles querem que seja”.
Levine, que trabalha desde os anos 70 com pacientes terminais, também verificou essa mudança de atitude que notei em Beto: “Quando estou com estas pessoas vejo que o trabalho deles e o meu são exatamente a mesma coisa: abandonar o controle da autoproteção, abandonar aquele agarrar-se e aquele sofrer que nos mantém isolados; abrir-se para o agora, e, então, morrer no momento presente. Viver plenamente com aquilo que é dado, de coração aberto e com uma mente que não se agarra mais aos modelos”.
Em novembro de 1997, Beto decidiu tirar férias: abandonou todos os tratamentos da medicina tradicional e foi ao Rio de Janeiro à procura de uma terapia alternativa com ervas. Eu também tirei férias e fiquei fora do Brasil até fevereiro de 1998. Quando voltei recebi uma carta sua em que explicava sua nova opção de tratamento. Ele reforçava também nosso vínculo terapêutico.
Um mês depois, seu médico telefonou-me dizendo que Beto estava no hospital em estado grave. Havia desenvolvido uma deficiência hepática. O tumor começou a fabricar substâncias tóxicas que o deixaram muito fraco, magro e sem proteínas. Quase não tinha mais massa muscular.
Quando o encontrei, estava muito inquieto. Disse-me que não conseguia dormir, nem relaxar, mesmo sedado. Sua preocupação imediata era como resolver a tensão que havia entre ele e sua mãe, e entre ela e sua esposa.
Sua mãe estava muito ansiosa, o que o deixava ainda mais irritado. O ritmo do hospital é agitado. O tempo todo as enfermeiras entram e saem do quarto. O seu primeiro pedido foi para que eu o ajudasse a enfrentar tudo isso com mais calma.
Borrifei seu quarto com um spray aromático com essências de lavanda, manjerona e laranja, do qual ele gostava muito. Comecei massageando delicadamente seus pés inchados, enquanto ele falava do seu cansaço e do quanto gostaria de estar fazendo do seu processo de morte uma experiência positiva. Com os exercícios de relaxamento tornou-se cada vez mais calmo.
Continuei a visitá-lo diariamente. No terceiro dia, assim que entrei no seu quarto ele pediu para sair da cama e sentar-se na poltrona, pois disse que tinha algo muito bom para me contar. Tranqüilo, porém com um tom de voz forte e orgulhoso, me falou que tinha conseguido dizer adeus à sua família. Disse que foi reconhecido por seu pai como um herói vitorioso, pois soube ser perseverante no modo como levou sua vida e agora enfrentava a morte. Contou que fez doações a instituições e que deixou mensagens para aqueles que não estavam presentes. Depois que nos olhamos emocionados, nos abraçamos. Beto beijou minha testa e me agradeceu por toda ajuda que havia lhe dado. Por fim, me disse: “Agora devo só esperar”.
Conversamos, então, sobre como tornar esta espera uma “espera ocupada”, para gerar a energia positiva necessária para o que estava por vir. Concluímos que seria bom continuar o que já vínhamos fazendo: cantar mantras e fazer visualizações. Seu irmão me disse que escutou várias vezes Beto recitar em voz baixa o mantra Om Muni Muni Maha Muni Sakya Muni Soha. Esse mantra contém a essência energética dos métodos de autocura transmitidos por Buddha Sakyamuni. Não é sequer necessário ser um praticante do budismo para recitar e receber os benefícios desse mantra. Basta recitá-lo. Sua vibração sonora preenche nosso mundo interno de calma.Despedir-se tornou-se outra tarefa da “espera ocupada”. Na tarde seguinte, estavam reunidos no quarto vários amigos e parentes de Beto. Quando ele colocou sobre o seu peito uma foto sua com Gangchen Rimpoche, tirada seis meses antes durante o workshop que fizemos juntos e disse: “Este é um grande amigo”, todos ficaram em silêncio à sua volta olhando para ele. Foi quando Beto me disse: “Bel, vamos oferecer um pouco do spray para todos”.
Enquanto eu borrifava, todos fecharam os olhos criando uma atmosfera introspectiva e calma. Aproveitei a oportunidade para sugerir que déssemos as mãos e dirigi uma pequena meditação, na qual cada um emanava luz dourada para o outro. Depois eu disse:
“Estes são momentos que não esquecemos jamais em nossa vida. Quem quiser pode oferecer, em voz alta, algumas palavras para o Beto”.
Um a um falou sua mensagem. Muitos fizeram a promessa de continuar a levar adiante o seu exemplo. Sua mãe conseguiu lhe dizer que aceitava que ele partisse, porque agora sabia que ele estava em paz. Todos agradeceram por aquele momento. Saímos do quarto e deixamos Beto a sós com sua esposa.
No dia seguinte, entre brincadeiras, risos e uma profunda emoção, Beto se despediu de seu médico. Agradeceu a ele sua amizade e dedicação. Estava presente e guardei na memória as palavras de Beto: “Estou já curado. A doença já passou, sou só eu que estou partindo. Tomei a decisão de na minha próxima vida ajudar as crianças que sofrem de câncer”.
Eu também tinha vontade de encontrar o momento para despedir-me dele, mas não houve espaço para despedidas entre nós. Nos três dias que se seguiram, Beto permaneceu inconsciente até falecer de madrugada.
Após a morte de Beto, passei uma semana muito desatenta e distante de tudo e de todos. Não conseguia retomar meu cotidiano. Foi quando me dei conta de que estava tentando evitar sentir a dor do luto.
Precisava escutar o meu sofrimento. Sentir minha vulnerabilidade. Lembrei-me de um ensinamento budista que me ajudou a tomar uma atitude. O budismo nos ensina que só aceitamos a partida de uma pessoa, quando sentimos ter recebido dela tudo o que queríamos receber. Percebi, então, o quanto eu sentia não ter me despedido de Beto.
Busquei um lugar onde me sentisse tranqüila e certa de que não iria ser interrompida. Escrevi, então, uma longa carta de despedida para Beto. Nos dias seguintes, aos poucos retomei minhas atividades. Mas a experiência de ter acompanhado Beto parece ser inesquecível.
Extraído do livro “Morrer não se improvisa” de Bel Cesar. Ed.Gaia