Quem já não se cansou da própria preguiça?
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 28/05/2004 12:32:36
Na Indonésia, ao acordarmos de madrugada para visitar Borobudur, um relicário budista do século VIII, Lama Gangchen Rimpoche nos disse: “Para fazer coisas negativas não temos preguiça, mas para realizar as positivas precisamos de muita força de vontade”.
Segundo o Abhidharma, a preguiça é uma dos Vinte Fatores Afins da Instabilidade (ou uma das Vinte Emoções Secundárias). Na preguiça nos apegamos, por ignorância, a uma sensação aparentemente positiva, como a sonolência, e abandonamos a iniciativa de agir em função de algo maior e positivo. A preguiça surge da ilusão de que é possível satisfazermo-nos com pouco. Um amigo me forneceu um exemplo bastante ilustrativo ao falar sobre o impacto que seu avô alemão sentiu ao chegar no Brasil no início do século XX. Como imigrante, desembarcou no Porto de Santos com paletó e chapéu branco. Ao ver um brasileiro descansando ao pé de uma palmeira, ofereceu-lhe uma boa gorjeta para que ele carregasse seus pertences até o Hotel mais próximo. Mas o brasileiro lhe respondeu: “Obrigado, eu já comi hoje”.
Lelo quer dizer preguiça em tibetano: “É a mente relutante, associada à perplexidade-erro, dependente dos prazeres da sonolência, que se deita e não levanta. Sua função é obstruir e dificultar que a pessoa se aplique a coisas positivas. A preguiça faz com que todas as coisas positivas se dispersem”. Portanto, a preguiça é uma mente de pouco alcance, incapaz de reconhecer os danos decorrentes de abstermo-nos das responsabilidades.
“Na África, diz-se que, quando uma pessoa adoece, todo mundo está doente. A aldeia ou a tribo é vista como uma enorme árvore, com milhares de galhos. Quando uma parte dessa entidade viva adoece, é preciso reexaminar a árvore inteira. É por isso que, quando alguém está doente, todo mundo se preocupa; faz lembrar que existe um risco que afeta a todos” adverte a africana Sobonfu Some. (O Espírito da Intimidade, Ed. Odysseus)
No Ocidente, no entanto, ocorre o contrário: somos tentados a acreditar que seria possível isolarmo-nos de todas as situações de conflito e viver em nosso pequeno mundo. Mas, atualmente, cada vez mais percebemos que não somos “peças soltas” de um quebra-cabeça. O caos existente dentro e fora de nós constantemente nos pressiona e nos vemos obrigados a reconhecer que não podemos permanecer deitados numa rede, contaminados pela preguiça.
A tendência a “ficar na rede” é sustentada pela esperança infantil de que alguém, ou uma força maior, irá fazer por nós o esforço de viver. Desta forma, a preguiça nos enfraquece, tornando-nos dependentes e submissos a esse outro ente que irá tomar as providências por nós. Ao perdermos a habilidade de nos auto-sustentarmos, perdemos o prazer advindo da responsabilidade, isto é, o prazer de conhecer nosso potencial de autocura.
Em geral, nossa mente é tão rígida! Apenas de ouvir falar sobre a necessidade de “mudar’ já ficamos tensos. Temos preguiça de realizar mudanças. No entanto, no caminho do autodesenvolvimento, não há tempo para nos “instalarmos na rede”. Temos que ficar constantemente atentos às desculpas que usamos para não buscar a evolução. Não podemos confundir estabilidade com estagnação, ou segurança com resistência à mudança.
“Ficar na rede” é como descansar no meio de uma corrida e acabar por confundir o descanso com a chegada.
Ter preguiça significa estarmos presos na armadilha de adiar para o futuro nossa evolução pessoal, ou de nos contentarmos com prazeres imediatos. Ambas atitudes consomem nossa energia vital. Ficamos atolados, rendidos à nossa própria inércia. O mais grave é que assim não cultivamos uma base de sustentação para nossa energia futura. Enquanto estivermos entregues ao hábito da inércia, estaremos sempre desencorajados, entediados e sem força para nos movermos em direção ao novo.
Segundo a psicologia budista, existem três tipos de preguiça:
A preguiça da procrastinação, que surge quando pensamos “por que não deixar para amanhã..?”.
A preguiça ocupada, na qual preenchemos totalmente nosso tempo fazendo uma série de coisas como desculpa para não fazermos de fato o que sabemos que deve ser feito.
A preguiça por inferioridade, na qual cultivamos a sensação de não sermos capazes ou de ainda estarmos imaturos para fazer o que sabemos que é necessário ser feito.
A preguiça nos paralisa. É como um processo de fuga no qual evitamos lidar com o inevitável. Certa vez, quando Chagdug Rimpoche nos ensinava a importância de nos compararmos com aqueles que estão em situações piores do que a nossa para podermos reconhecer nossas oportunidades de crescimento, eu lhe perguntei: “E quando somos nós que estamos servindo de exemplo para os outros, ou seja, quando somos nós que estamos na pior situação”? Então, ele me respondeu: “Neste caso, você não tem outra saída a não ser trabalhar sua preguiça”.