Uma visão pacífica da morte
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 30/12/2005 10:20:46
O último dos 12 Elos de Interdependência nos fala sobre a morte. “Último” aqui não quer dizer que não há nada mais depois dele, pelo contrário. Numa visão cíclica e holística, o último é o primeiro de uma nova série...
Em sua última visita ao Brasil, Lama Gangchen Rinpoche nos disse: “Se usássemos a palavra renascimento no lugar de morte, grande parte de nossos problemas em relação ao processo de morrer já estariam resolvidos. Não diríamos fulano morreu hoje, mas fulano acaba de renascer...”
Transcrevo um trecho da introdução de meu livro Morrer não se Improvisa (Editora Gaia): “O budismo nos incentiva a superar qualquer preconceito de pensar ou falar sobre a morte.
Mas enquanto não tivermos alguma experiência direta com a morte, nossa idéia a respeito será apenas intelectual, limitada pela nossa própria falta de experiência. Podemos conhecer a morte de um ponto de vista cultural, religioso, científico ou histórico. Mas continuamos sem saber o que mais nos toca: quando e como nossa morte ocorrerá. Quando esse momento se aproxima é que nos damos conta de que deveríamos saber muito mais sobre ela. Ao sermos tocados pela idéia de nossa própria morte como uma realidade certa, podemos suavizar esse impacto preparando-nos desde já para esse momento.
A morte é um conceito que adquirimos de acordo com a nossa personalidade, ambiente social, cultural e religioso e educação familiar. Nossa visão de morte está contaminada. Então, temos que revê-la. Se nos concentrarmos nela poderemos perceber que muitas de nossas idéias arquivadas são contraditórias.
Se fecharmos os olhos e repetirmos a palavra “morte” inúmeras vezes iremos constatar que, cada vez que dissermos essa palavra surgirão pensamentos, imagens e sentimentos diferentes. Na maioria das vezes eles são antagônicos. Se continuarmos essa experiência de mergulhar até onde leva a palavra “morte”, notaremos que algo em nosso interior muda positivamente. A experiência direta é um antídoto potente para superar nossas resistências. Podemos trabalhar com os nossos preconceitos; não estamos destinados a ficar presos a eles.
O budismo explica a morte como a separação da mente e do corpo, depois que o corpo se desintegra e a consciência continua para outra vida. A morte não é, portanto, uma cessação, mas sim uma transição, uma transformação. Muitas vezes preferimos dizer “o momento de sua passagem”, em vez de falar “o momento de sua morte”. Acredito que essa delicadeza com a palavra “morte” seja um mecanismo de defesa. É uma forma de não lidarmos com o peso da idéia de morte que trazemos em nós. Mas o termo “passagem” é muito adequado a essa idéia de transição.
A certeza de uma continuidade após a morte nos ajuda a lidar com o niilismo de nossa cultura materialista, em que o abstrato e o invisível não são reconhecidos como verdadeiros e possíveis. No entanto, não devemos cair no extremo de querer deixar a morte “leve” demais, buscando uma visão poética na qual também estaremos escondendo nosso medo de encará-la.
Em minha experiência clínica observei que a forma como uma pessoa vivencia a perda de um dos pais ou de alguém significativo, tem uma influência enorme na maneira como ela dá continuidade à sua vida depois de ter enfrentado a morte de alguém. Na maioria das vezes, se ela testemunhou uma morte tranqüila, sua vida passa a tomar um rumo significativamente positivo: consegue se definir melhor profissionalmente, afetivamente e espiritualmente.
Testemunhei pacientes que só encontraram um propósito claro de vida depois de terem vivenciado a morte de seus pais de maneira positiva: casaram-se, tiveram filhos, buscaram uma profissão mais próxima de sua natureza. Mesmo aqueles que viram os pais morrerem com muito sofrimento, mas que puderam dar um significado positivo a essa experiência, foram depois capazes de dar origem a uma nova força que geralmente ajuda a transformar sua vida.
No entanto, a maioria de nós traz consigo o testemunho de uma morte intranqüila. Essa situação costuma gerar, para aqueles que ficam, inúmeras tarefas inacabadas: o que deixaram de ouvir e de dizer à pessoa que se foi, projetos suspensos frustrados, o apoio que não foram capazes de dar, a experiência de impotência frente ao sofrimento. A solidão de quem está morrendo e a inabilidade daqueles que estão à sua volta em ajudar os que enfrentam a morte evidenciam falhas profundas no nosso sistema médico-hospitalar, cuja visão de nossas necessidades humanas precisa ser urgentemente revista.
A vida pode parar e perder o sentido para aqueles que não elaboraram a dor vivida ao assistir uma morte. A ausência de rituais de passagem em nossa cultura ocidental aumenta a alienação daqueles que sofrem, tanto aqueles que enfrentam a morte quanto os que estão ao lado deles. Esses rituais ajudam aqueles que estão morrendo a compreenderem que estão frente a uma “nova oportunidade” e auxilia aqueles que ficam a olhar para a vida de um novo modo, sem a presença daqueles que se foram.
Ao dissimular a morte deixamos de elaborar a realidade de nossa mortalidade. A morte nos aterroriza. Como conseqüência, nos tornamos cada vez mais violentos e auto-destrutivos. Se nossa sociedade integrasse a morte como uma realidade possível de ser vivida positivamente haveria menos revolta frente a ela. Só quando nos abrimos para uma idéia pacífica da morte, nossos sentimentos reprimidos são liberados. Graças a uma nova postura de aceitação e acolhimento, poderemos superar os tabus que nos impedem de vivenciar pacificamente situações que envolvem a morte”.
Última atualização em 21/8/6