Viva Hipátia
por Acid em EspiritualidadeAtualizado em 21/02/2024 11:14:39
No dia das mulheres a melhor homenagem que posso prestar é lembrar de uma das grandes e inspiradoras mulheres da humanidade, que nos deixou o exemplo de que não existe limitação de gênero para o conhecimento humano: Hipátia de Alexandria.
Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha do filósofo Theon, que fez tantas realizações na literatura e ciência que suplantou todos os filósofos de seu tempo. Havendo sido bem sucedida na escola de Plato e Plotino, ela explicou os princípios de filosofia para os seus ouvintes, muitos deles vindo de lugares distantes para receber seus ensinamentos. Devido ao seu auto-domínio e à sua maneira calma, que ela havia adquirido em conseqüência do cultivo da sua mente, ela aparecia regularmente em público na presença de magistrados. E ela nem se sentia envergonhada por se fazer presente numa reunião de homens. Porque devido à sua dignidade e virtude, todos os homens a admiravam.
(Socrates Scholasticus; Ecclesiastical History)
Hipátia (ou Hypatia) nasceu no Egito no ano 370 d.C., filha de Theon de Alexandria. Theon era um conceituado filósofo, matemático e astrônomo, e escreveu uma tese em 11 livros sobre o célebre tratado de astronomia de Ptolomeu, intitulado "Almagesto" (O grande tratado). Esta obra é uma das mais importantes e influentes da antiguidade clássica. Nela está descrito todo o conhecimento astronômico babilônico e grego, a base da astronomia de árabes, indianos e europeus, até o aparecimento da teoria heliocêntrica de Copérnico. No Almagesto, Ptolomeu apresenta um sistema cosmológico geocêntrico, isto é a terra está no centro do Universo e os outros corpos celestes, planetas e estrelas, descrevem órbitas em seu redor. Estas órbitas eram relativamente complicadas, resultando de um sistema círculos com centro em outros círculos (concêntricos). Theon de Alexandria realizou ainda uma revisão dos "Elementos" de Euclides, de onde são baseadas as edições mais modernas da obra do conhecido matemático grego.
É importante falar do pai de Hipátia porque devemos dar importância à (As famílias fundadas sobre este lastro intelectual e de projeção social de Alexandria da sua época costumavam ainda cultuar o ideal Grego da "Mente sã, corpo são" (men sana in corpore sano). Com esse lema no pensamento, o pai de Hipátia não mediu esforços para torná-la o "ser humano ideal", ensinando-lhe matemática e filosofia, e levando-a a fazer um programa de preparação física para lhe assegurar um corpo saudável. Todo esse esforço foi compensador.) criação(*), que foi a base para o crescimento intelectual de Hipátia, e como isso diferia enormemente da cultura (na época machista) que estava dominando a região: o cristianismo (como interpretado pelos apóstolos). Damáscio, um dos antigos alunos de Hipátia, escreveu que ela era "por natureza mais talentosa e refinada do que o seu pai", o que, vimos acima, não era pouca coisa.
Muito cedo Hipátia deu provas do seu talento, tornou-se professora e deu aulas de matemática e filosofia na Biblioteca de Alexandria (um dos maiores centros de conhecimento do mundo antigo), inclusive para alunos pagãos, cristãos e estrangeiros. Era considerada uma discursante muito carismática, e suas aulas eram bastante concorridas. Escreveu comentários a obras clássicas de matemáticos Gregos. Manteve-se solteira e declarava-se "casada com a verdade". Por volta de 400 d.C. foi Diretora da Biblioteca de Alexandria, sucedendo ao seu pai. Foi também a primeira mulher que a história registra como Matemática. Neste campo Hipátia escreveu comentários sobre a "Aritmética" de Diofanto e as "Cônicas" de Apolônio, fez investigações sobre a geometria de Euclides, interessou-se pelas ciências aplicadas, inventou um novo modelo de astrolábio e criou, nos ateliês da Biblioteca de Alexandria, diversos instrumentos mecânicos de medida, como um nivelador de água, um higrômetro e um aparelho para destilar água. A maior parte da obra escrita por Hipátia perdeu-se no tempo, mas no século XV foi encontrado na Biblioteca do Vaticano uma cópia do seu comentário sobre a obra do matemático grego Diofanto.
No campo da filosofia Hipátia abraçou a causa Neoplatônica que, na Alexandria, estava em oposição aos grupos cristãos, fervorosos e atuantes. Ao longo do tempo o cristianismo dominou e até mesmo assimilou o que lhe interessava do Neoplatonismo, que na época era considerada uma filosofia pagã; isto aconteceu em Alexandria e por todo o mundo Romano. Disputas religiosas e conflitos entre lideranças de Alexandria atraíram a ira dos fanáticos cristãos contra a "herege" Hipátia, que resolveram fazer dela um exemplo.
Existem várias versões sobre o seu trágico final, todas coerentes entre si, sendo que a mais difundida é a variante registada por Edward Gibbon, no seu livro "O Declínio e a queda do Império Romano": Numa manhã da quaresma de 415 d.C., Hipatia foi atacada na rua por uma turba de cristãos, quando regressava à sua casa numa carruagem. A multidão enfurecida arrancou-lhe os cabelos e a roupa, esfolou-a viva com conchas de ostras; arrancaram-lhe os braços e as pernas e queimaram o que sobrou do seu corpo.
O impacto dramático da morte de Hipátia fez com que alguns historiadores interpretassem como o marco do fim do período antigo da matemática Grega. Para outros este desfecho só ocorrerá cerca de 100 anos mais tarde, com a morte de Boécio, também de uma forma trágica. Entretanto a morte de Hipátia, de um certo ponto de vista, sinaliza o fim de Alexandria como centro intelectual da antiguidade.
Os motivos para tal barbaridade são em certo ponto obscuros, mas com certeza incluem política e fanatismo religioso em larga medida. Primeiro a política: havia uma luta de lideranças em Alexandria, notadamente entre o Governador Orestes e Cirilo, o Bispo de Alexandria (ou seja, o poder político contra o poder religioso, este último cada vez mais forte e que resultou no poder de fato, na Idade Média). Judeus e cristãos estavam em um clima de tensão permanente. Com a proibição de uma festa judia pelo Governador Orestes (por motivos de ordem pública), Hierax, um cristão seguidor de Cirilo começou a aplaudir a ordem e incitar a multidão contra os judeus. Orestes, pra evitar que outras provocações se seguissem, mandou torturar Hierax em praça pública. Cirilo não gostou e ameaçou os judeus (lembrando que tanto Orestes quanto Cirilo eram cristãos, e até então os judeus não tinham nada a ver com isso). Só que os judeus não gostaram nada da ameaça e resolveram fazer uma emboscada para os cristãos, numa noite espalhando o boato de que uma igreja cristã estava em chamas e matando todos os cristãos que saíssem de casa. No dia seguinte Cirilo (passando por cima da autoridade de Orestes) mandou expulsar toda a comunidade judia de Alexandria, e pilharam suas casas e roubaram seus pertences. Tanto Orestes quanto Cirilo escreveram ao Imperador (a maior autoridade até então) pedindo uma intervenção, mas o Imperador se omitiu, o que provocou essa escalada da violência.
As tensões aumentaram ainda mais quando um grupo de 500 monges dum mosteiro remoto do deserto - homens conhecidos pelo seu zelo fanático mas não identificados como pessoas com sofisticação política - vieram à cidade em massa, como forma de apoiarem Cirílo, e deram início a tumultos que resultaram na comitiva de Orestes ter sido cercada e ele foi bombardeado com ofensas e chamado de idólatra. Ignorando os apelos de Oreste de que ele era cristão batizado, um dos monges (Ammonius) jogou uma pedra na cabeça do Governador, que sangrou profusamente. Orestes mandou torturar e matar o monge, o que foi visto pelos cristãos de bom-senso como uma punição civil (agressão a uma autoridade), mas não por Cirilo, que fez disso uma perseguição religiosa e transformou Ammonius num MÁRTIR!
É aí que entra a parte da manipulação e uso da intolerância religiosa pra conseguir o poder: convinha muito a Cirilo que Hipátia fosse eliminada, pois ela, além de ser uma propagadora do "paganismo" Neoplatônico (e perigosa pois era respeitada pelos próprios cristãos) era influente entre os magistrados e com o próprio Orestes. Socrates Scholasticus, um erudito cristão contemporâneo de Hipátia, escreve:
Hipatia foi vítima de inveja politica que existia por essa altura. Uma vez que ela tinha conversas frequentes com Orestes, foi reportado de um modo calunioso entre a população Cristã de que era ela quem impedia Orestes de se reconciliar com o bispo. Devido a isto, alguns deles apressaram-se no seu zelo feroz e fanático, cujo líder era Pedro o declamador, emboscaram-na enquanto ela voltava para casa, arrastaram-na da sua carruagem, levaram-na para a igreja chamada Caesareum onde eles a despiram e a mataram usando azulejos [conchas de ostras]. Depois de terem rasgado o seu corpo em pedaços, levaram os seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron, onde eles a queimaram. Este incidente não deixou de trazer vergonha, não só para Cirílo mas para toda a Igreja Alexandrina. Porque certamente nada está mais afastado do espírito do Cristianismo do que a permissão de massacres, lutas e transações deste tipo.
Não sabemos por Socrates Scholasticus o que falaram da Hipátia para que houvesse tanto ódio dos fanáticos cristãos por ela, mas o Bispo John de Nikiu, que viveu algumas centenas de anos depois desses fatos (700d.C.), escreve sobre ela: (Uma) "mulher pagã que fascinou as pessoas da cidade e o Governador através de seus encantamentos". Ou seja: Para a Igreja Hipátia era uma bruxa. E, como todas as outras mulheres pelos próximos mil anos que ousaram ser inteligentes, influentes entre o povo e livre-pensadoras, ela teve de ser torturada e queimada.
A vida, a obra e a morte trágica de Hipátia despertaram a atenção de filósofos, matemáticos e historiadores que a sucederam. Intelectuais desde Voltaire a Carl Sagan, passando por Bertrand Russel dedicaram-lhe comentários de apreço e reconhecimento. Hipátia foi imortalizada na parede do Museu do Vaticano pelo pintor renascentista Rafael Sanzio, no seu quadro "A escola de Atenas". A sua vida foi reconstituída num romance de Charles Kingsley (Hypátia, or new foes an old face, 1907) e contada por Maria Dzielsk (Hypátia of Alexandria, 1995). Em 2009 o diretor espanhol Alejandro Amenábar (Mar adentro, 2004) dedicou um filme à vida de Hipátia (Ágora, 2009) onde ela é representada pela atriz inglesa Rachel Weisz. No filme não são apresentados os detalhes do seu final trágico. Hipátia é retratada como uma mulher agnóstica e letrada, destruída por fanáticos religiosos. Alejandro Amenábar declarou que o seu filme podia ser interpretado como uma espécie de reflexão sobre os fundamentalismos religiosos de todos os tempos.
Referência:
Wikipedia - Hypatia;
Códigos da Cultura - Hypatia de Alexandria;
Hipatia e a ignorância histórica dos militantes ateus;
The last classical philosopher;
Hypatia - Egyptian Scientist