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Voltando para casa

por Adília Belotti em Espiritualidade
Atualizado em 30/09/2005 12:34:27


Fico me perguntando quantos de vocês assistiram ao filme E o Vento Levou... Bem poucos, imagino... está certo. O filme é de 1939, nem eu, que assisti em puro transe umas dez vezes, era nascida. É, talvez valha a pena pegar este clássico do cinema na locadora e aproveitar o frio para descobrir como se faziam épicos na época pré-Spielberg. Mas não faz mal. Vou contar para vocês da cena que ficou impressa na minha memória: estão lá os dois amantes, num tempo construído com palavras como honra, virtude, nobreza. Dois amantes separados por um colosso de deveres, de conveniências, de hipocrisias. Ela - pasmem - em 1939, queria jogar tudo para o alto e fugir com ele. Ele ousa recusar e lança na tela o ideal de vida de um mundo que parecia destinado a acabar: “Sim, existe alguma coisa que você ama mais do que a mim, apesar de talvez não ter percebido ainda. Abaixa-se, pega um punhado da terra da fazenda familiar devastada pela guerra, coloca nas mãos dela: Tara. É da terra vermelha de Tara que você extrai sua força”.

Ficaram pelo menos um pouquinho curiosos? Então, por favor, vejam o filme e depois me contem se ele envelheceu ou se ainda está tão quente e vivo quanto aparece nas minhas lembranças de menina.

E por que será que fiz vocês abrirem este velho baú comigo? Acho que é porque aproveitei o final de semana friorento para garimpar o rio das nossas memórias humanas comuns e tentar entender que imagens compõem nossa idéia de casa, de lar.

Antes das casas, antes até mesmo das cavernas, lar, para os nossos ancestrais era a Terra. Até onde a vista alcançasse, ali era seu lar. E seu chão. Nós sempre tivemos uma Mãe e seu corpo era nossa casa. Fértil e voluntariosa, a Mãe-Terra dava a vida e a tirava. Vivíamos à volta das suas verdes saias, tentando entender seus desejos, molhando seu corpo moreno com nossas lágrimas. Sua casa, nossa casa, ora era acolhedora, ora era terrível, mas nela havia um tempo pra cada coisa, tempo de trabalhar, tempo de descansar, tempo de amar, tempo de sofrer, tempo de celebrar... Filhos da Terra, criaturas telúricas que éramos, nossos ritmos eram os seus ritmos, nosso coração pulsava junto com o seu. Mas se por desobediência ou capricho nós nos afastávamos, ela nos punia com sua fúria feminina, apenas para nos acolher de novo, mimando-nos com seus dons e com seus frutos.

É tão extraordinária esta nossa devoção à Mãe-Terra que Mircea Eliade, no livro Tratado da História das Religiões, conta não uma nem duas, mas inúmeras histórias de povos que se recusavam até mesmo a usar técnicas agrícolas mais avançadas apenas para “não ferir o corpo de nossa Mãe”. Na Índia, por exemplo, os baiga praticam um tipo de agricultura complicado, plantando só nas cinzas que restam de incêndios naturais nas florestas porque julgam “um pecado rasgar o seio da Mãe-Terra com a charrua”.

Além de nosso lar, a Terra era nosso berço. Pelo menos é o que comprovam tradições antiqüíssimas espalhadas aqui e ali pelo mundo, que mandavam colocar os recém-nascidos no chão. De alguma forma, a Terra lhes emprestaria sua alma ou, como preferem alguns, eles receberiam os poderes mágicos do solo. Para mim, sendo mãe, acredito que ali, aconchegados no corpo da Avó, os bebês ouviam sua primeira canção de ninar.
Leio que além dos bebês, os doentes também eram depositados na Terra para que ela os curasse com sua própria substância.

No rio das memórias humanas aprendo que a soturna frase bíblica “Tu és pó e ao pó retornarás”, longe de ser uma maldição, é pura benção. Filhos da Terra, ao morrer, para ela voltamos. Separados dela ao nascer, somos de novo parte de seu corpo vivo e fértil ao morrer.

Fui cavoucar neste baú e molhar os pés neste rio porque, logo de manhã, enquanto tomava um café e ensaiava um flerte com o sabiá pousado na madressilva que eu mesma plantei há exatos oito anos no jardim, tinha sido inundada pela idéia de lar. Aquela era minha casa, minha força, meu refúgio, e se eu tivesse um dia que vendê-la? E se fosse preciso mudar dali?

Passei a tarde tão fria de domingo lendo histórias da Mãe-Terra. Apenas para descobrir que onde quer que nos encontrássemos novamente, eu, o sabiá e a madressilva, estaríamos, sim, sempre voltando para casa.


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adilia
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM.
Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma.
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