No sexo, a biologia conta menos que a cultura
por Flávio Gikovate em PsicologiaAtualizado em 05/04/2007 18:16:41
Escrevo com cautela, tentando comunicar exatamente o que tenho conseguido pensar sobre o peso da biologia em nossa forma de ser. Sei do parentesco genético que temos com os mamíferos superiores. Sei também que nosso cérebro foi capaz de produzir uma linguagem sofisticada e, graças a ela, nos iniciamos na mágica do pensar. Tornamos-nos conscientes de nossa condição mortal, formamos juízos de valor, construímos regras de vida em comum. Sabemos programar o futuro e imaginar situações inexistentes. Passamos a ter alma (mente, razão): o fruto da atividade cerebral se distanciou de tal forma das suas reações químicas que temos a sensação de que pensamos com autonomia. Não interessa aqui discutir se a alma sobreviverá ao corpo; não é o nosso tema. Porém, enquanto vivos, temos a sensação de que possuímos esta entidade imaterial responsável pelas nossas reflexões e também pela comunicação que estabelecemos uns com os outros.
Nenhum animal possui nada que se assemelhe à nossa alma. O cérebro, ao ser capaz de gerar pensamentos, nos distanciou radicalmente dos nossos ancestrais biológicos. Creio que somos mais “filhos de Deus” do que “primos dos macacos” (acho isso até mesmo se Deus não existir!). Assim, não considero os zoólogos como pessoas indicadas para falar de nós. Há um abismo qualitativo que nos diferencia dos macacos mais sofisticados.
É claro que somos influenciados pelas nossas propriedades biológicas, já que elas interferem no processo de pensar, que se passa no cérebro (e que está sob a influência dos hormônios e de tudo o que se passa no corpo). Porém, não creio que somos escravos de tais propriedades. Elas definem tendências e não devem ser entendidas como ordens: possuo um desejo sexual desencadeado pela visão de um belo corpo feminino, mas não sou obrigado a ir atrás dele e atracá-lo a qualquer custo. Tenho vontade de bater em alguém mais fraco e que me ofendeu; mas não sou obrigado a agir assim. Tenho razão e discernimento para decidir se vou - ou não - acatar os meus impulsos naturais.
Tratar nossos impulsos biológicos como ordens está a serviço das piores causas. Sustenta a tese de que a infidelidade sexual masculina está a serviço da perpetuação dos genes dos mais fortes; que em sociedade os mais dotados - física ou intelectualmente - têm direito de massacrar e oprimir os mais fracos e tudo o mais que se queira validar. Privilegiar a biologia implica em descaso pela nossa razão e sua força. Isso defende a idéia de que as pessoas imaturas - e que não têm controle sobre suas emoções e sentimentos - é que estão certas e são a obra máxima da nossa espécie. Negar a potência e o vigor da razão é negar nossa capacidade de autogestão, de podermos ser senhores de nós mesmos.
Felizmente, a verdade não é essa. Os próprios padrões culturais seculares são periodicamente reformulados por nossa razão sempre atuante. O planeta que habitamos não é o mesmo dos macacos e fomos nós que o construímos (para o bem e para o mal). Mudamos o planeta e nos adequamos às novidades que inventamos. Nos 40 anos que venho trabalhando, assisti a várias mudanças inesperadas na história sexual da nossa espécie. Cito duas: o fim abrupto e inesperado do que se chamava de tabu da virgindade e o surgimento do “ficar”. A emancipação financeira das mulheres (derivada inicialmente do fato dos homens estarem no front militar ao longo da segunda grande guerra) e mais a invenção das pílulas anticoncepcionais provocou, em poucos anos, uma dramática alteração no padrão cultural milenar que exigia que as mulheres se mantivessem virgens até o casamento. O “ficar”, inventado pelos adolescentes, fez com que meninos e meninas da mesma faixa etária e mesma condição sócio-cultural se encontrassem sexualmente sem nenhum tipo de compromisso futuro, fato inesperado até por aqueles que, como eu, estavam atentos às possibilidades de mudança.
Assim, não cabe responsabilizar nem a biologia e nem mesmo os padrões culturais tradicionais pela nossa inação. Não podemos mudar o mundo, mas somos livres para mudar nossas vidas. Sugiro, para começar, duas mudanças:
1. Que os rapazes mais bem formados emocional e moralmente podem parar de invejar os paqueradores profissionais, aqueles que substituem as experiências qualitativas com parceiras escolhidas por afinidades pela série interminável de conquistas eróticas fundadas em mentiras sedutoras. Ficam com o que há de pior: as primeiras relações (onde todos estão um tanto desajeitados) e o desejo de sumir da pessoa logo que o desejo se sacia - já que ele era o único fator de atração.
2. que as moças mais maduras sejam mais discretas e não se deixem escravizar pelo exibicionismo tão ao gosto daquelas que costumam usar seus poderes para obter benefícios de toda ordem. São duas sugestões fáceis de serem implementadas e que estão em franca oposição a todos os padrões da cultura atual, fundada no consumismo (e no lucro das grandes empresas) mais do que na nossa felicidade. Elas são só as primeiras de uma enorme lista de sugestões que ainda pretendo fazer, todas elas possíveis de serem postas em prática imediatamente pelas pessoas de boa vontade e que sejam portadoras de uma razão atuante. Não podemos mudar o mundo, mas podemos, sim, mudar nosso destino individual.