A TRAVESSIA
Shangna, o mais sábio mestre de um povo esquecido no tempo, notando o peso que a sua idade trazia, percebeu que era chegada a hora de encontrar um repouso para o seu corpo no alto de Amrita - a Montanha Sagrada.
Havia, entretanto, um problema: naquele tempo, acreditava-se que um mestre jamais poderia entrar no Reino dos Céus levando consigo a sua "chave".
Cada mestre de cada uma das Sete Escolas Aceitas, possuía então uma chave e, uma vez por ano, os sete mestres reuniam-se no alto da Montanha Sagrada, para abrir ao mundo a Grande Arca, em cujo interior encontrava-se toda a sabedoria dos Construtores de Mundos. À periódica abertura da Grande Arca, era atribuída a continuidade da vida sobre a Terra.
Os últimos anos, porém, haviam sido marcados por muitas guerras entre seu povo e os reinos vizinhos, e todos os discípulos de Shangna foram perseguidos e mortos, não restando ninguém que estivesse preparado para herdar a sua chave. A chave de Shangna trazia entalhada em si o mais belo e o mais terrível dos selos, chamado: o Verdadeiro Amor! Não encontrar ninguém digno de guardá-la após a sua morte, significaria banir o Amor da face da Terra. Por outro lado, Shangna sabia que, mesmo se encontrasse um jovem de coração puro, digno de ser instruído e preparado para essa tarefa, não haveria tempo suficiente para que ele cumprisse com todas as etapas do discipulado.
Após muito meditar sobre esse dilema, Shangna adormeceu e, assim, sonhou com as calmas águas de um lago. Em seu sonho, um grande cisne branco descia dos céus e pousava suavemente sobre o lago sem perturbar o claro espelho dágua. Logo em seguida, notou que o cisne parecia contemplar-se nas águas do lago, baixando lentamente a cabeça até tocar com o bico o seu próprio reflexo.
Nesse momento, Shangna despertou. Mas como ainda era muito cedo na madrugada, deitou-se e logo adormeceu. Novamente, sonhou Shangna com o lago. Desta vez, porém, as águas stavam muito agitadas, tanto que os peixes saltavam do seu leito, sendo devorados em pleno ar por uma grande águia que voava por ali.
Mais uma vez Shangna despertou e, embora o sol ainda não houvesse nascido, resolveu o sábio seguir em sua última jornada, pois havia reconhecido nos sonhos a interferência Divina sobre o seu problema.
Caminhou só por vários dias, o sábio, até que viu-se à margem de um rio de águas bravias. Na outra margem uma bela jovem parecia tentar encontrar pedras seguras para atravessar a corrente e chegar até ele. Não demorou muito e por detrás da moça surgiu um belo cavaleiro, montando um enorme cavalo branco...
- O que pretendes, bela jovem? - perguntou o cavaleiro.
- Desejo cruzar este rio e chegar ao mestre que porta a chave do Verdadeiro Amor - responde a donzela.
- Monta, pois, comigo em meu cavalo e juntos chegaremos a ele - sugeriu o cavaleiro.
Admirada pela beleza daquele cavaleiro e confiante na força de sua montaria, subiu a jovem à garupa e, juntos, iniciaram a travessia. Poucos metros da margem avançaram, porém, até que os cascos do cavalo deslizassem sobre as pedras e que fossem arrastados pela correnteza.
Embora horrorizado, Shangna permaneceu na sua margem do rio, até que outra donzela, tão bela quanto a anterior, aproximou-se da margem oposta, aparentemente com o mesmo propósito da outra.
Logo apareceu um forte lenhador que, assim que tomou conhecimento das intenções da moça, ofereceu-se para derrubar uma árvore e fazer uma ponte para que pudessem chegar juntos ao mestre e à sua chave. Maravilhada com a força do lenhador, a jovem aceitou a proposta e quando a árvore foi derrubada atingindo a outra margem, ambos deram-se firmemente as mãos e iniciaram a travessia. Mas a árvore não era tão pesada para a força das correntezas e, ao sacudir um pouco,desequilibrou o lenhador fazendo-o cair levando a moça consigo pela mão.
Mais uma vez horrorizou-se Shangna com as vidas arrastadas pelo rio. Porém, uma outra jovem aproximou-se da outra margem. Atrás dela, seguiu-se a visão de um homem de olhar tranqüilo, porte franzino e sorriso sincero. Não possuía montarias e nem tinha a força de um lenhador. Aproximando-se da moça, perguntou-lhe:
- O que desejas aqui, bela criança?
- Desejo chegar ao mestre que está na outra margem, pois sei que ele possui a chave do Verdadeiro Amor - respondeu a jovem.
- Mas estas águas são por demais violentas, nada resistiria às suas correntezas e, por certo, tu morrerias tentando cruzá-las - aconselhou o homem do olhar tranqüilo.
Então a moça perguntou:
- Como farei para chegar ao mestre, então?
E o homem propôs:
- Fica tu aqui, nesta margem segura. Não te arrisques, pois a tua visão despertou em mim um profundo amor e certamente não suportaria ver-te sendo levada pelo rio. Deixa que eu vá só ao encontro do mestre; subirei um pouco mais rio acima por esta margem, onde sei que há pedras mais firmes e águas mais calmas. Assim atravessarei com segurança e chegarei ao mestre que lá está podendo trazer-te a chave do Verdadeiro Amor.
Encantada com o carinho daquele homem, com o seu tranqüilo olhar e com o seu sorriso sincero; tomada pelo amor que descobrira, a jovem respondeu:
- Levarias dias até chegar ao mestre, e muitos outros ainda para que voltasses a mim; e mesmo assim arriscar-te-ias. Meu coração conheceu novo sentido na tua nobreza e no teu olhar, e a este novo sentido somente posso chamar de amor... o verdadeiro amor. Não precisamos portanto da chave que o mestre leva consigo.
Ao ouvir isso, Shangna emocionou-se e, tirando a chave de sua bolsa, adorou-a e ergueu-a aos céus. Nesse exato instante, desceu o cisne sobre os dois jovens amantes envolvendo-os com suas enormes asas. Sobre o sábio, uma águia tomou a chave das suas mãos e depositou-a aos pés do casal.
Shangna disse aos dois:
- A chave do Verdadeiro Amor não poderia mesmo ser dada a quem já não a possuísse em si mesmo. Guardem esta chave mas acima de tudo preservem o amor que há em vocês e que os faz um só ser. Lembrem-se de levá-la todos os anos ao alto da Montanha Sagrada, a fim de que a Grande Arca possa ser aberta e derramar as suas bênçãos sobre o mundo.
...e seguiu Shangna rumo a Amrita. O Verdadeiro Amor estava salvo para a eternidade.
("A Travessia", Essen)
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