Conversa no Escuro
"Mãe, posso dormir com você?", "Claro, meu amor!" e assim deitamos as duas na imensa cama e enquanto sentíamos o aconchego dos lençóis e do escuro do quarto começamos a conversar, a pensar alto, a perguntar simplicidades. Ficamos ali, conversando na escuridão sobre lembranças luminosas e lançando luz sobre as não-lembranças, as lacunas, as imagens silenciadas.
Falamos de amor. Das aflições, das delícias. Ela me diz que traz o coração aos pulos e a cabeça cheia de incertezas febris e vontades de condor. (Entre a vertigem do vôo e a segurança do ninho, minha filha exercita asas e lucidez.) Ela me falou dos efeitos físicos do amor: insônia, inapetência, dor de estômago, palpitação enquanto eu lia nela os efeitos do amor: olhos brilhantes, corpo de jovem leoa, cabelos desalinhados cheios de idéias e liberdade, fala de mulher, repleta de intuições, suspiros e apreensões.
Minha filha quis saber dos cheiros que eu guardava na memória. Eu lhe falei do cheiro da chuva encharcando a terra quente, do bagaço da cana, do cacau torrado, do fogão à lenha. O cheiro do Rio de Janeiro nos anos 60, um cheiro azul! A rouparia da minha avó enfeitada com pequenos feixes de raiz de sândalo cheirava aconchego. Eu lhe contei que dava nome às curvas do caminho para a fazenda e que lembro até hoje das pedras do rio: uma era grande e plana como um degrau, as outras bem arredondadas, depois uma pontuda muito imponente... Todas cobertas de limo, familiares e solenes.
Transpô-las era parte do ritual do banho de rio. (Até hoje fecho os olhos e com pés imaginários contorno aquelas pedras para depois lançar-me nas águas do rio que corre dentro de mim.) Dou a minha filha, minhas lembranças mais felizes e ela as recolhe como quem encontra estrelas no chão.
Ela me falou da primeira camisola que ganhou depois que tirou a fralda, da alegria de me dar colares feitos de macarrão, da importância dos meus bilhetes desejando boa prova, de brincar com o avô muito fraquinho na cama do hospital, da tristeza de encontrar uma baleia encalhada na praia, do encantamento de ver o Lucky andando no corredor do apartamento: "Gente! Nós ganhamos um cachorrinho!".
Minha filha tem alma de artista, olhos de poeta e leveza de beija-flor. Ela nasceu cor de rosa com jeito de aurora, rechonchuda como um boto, inesperada como um milagre. Veio trazendo muitas boas novas, desafios e sorrisos. De um jeito mágico, minha filha me trouxe de volta para mim mesma. Nasci dela.
Minha filha chegou para me ensinar a viver melhor e tem a gentileza e a generosidade de me fazer perguntas e querer aprender comigo. Ela lembra das minhas histórias, sabe o nome dos cavalos que eu cavalguei na infância, conhece os casos de assombração das minhas noites insones. Ela me vê menina: “Mãe, se eu te conhecesse na escola ia querer ser sua amiga!".
Minha filha tão intensa e profunda visita meu passado para me fazer presente em sua vida. Minha filha tão curiosa e ávida quer conhecer o que ama e amar o que conhece e eu me deixo conhecer por muitos inteiros pois sou muitas. Ela já viu meus abismos, meu rosto transfigurado pela dor, já ouviu minha voz encharcada de ressentimento, já me buscou em vão, quando perdida de mim afastava-me da luz.
Minha filha tão livre e luminosa me conta o que aprende, o que escreve e o que gosta. Me toma pela mão e num gesto amoroso me descortina seu mundo, seu olhar, as impressões que os livros, os filmes, os mestres e as viagens vão deixando no seu espírito irrequieto e incansável. Num acordo tácito, ela acessa minha memória e eu vislumbro a construção fascinante do acervo da sua alma. Fico maravilhada! Já não posso acompanhar o desenho do seu vôo. Ela é maior, mais forte, mais sábia.
Penso contraditória, orgulhosa e humilde, sou sua mãe, e isso quer dizer, fui transformada por ela...
Minha filha honra o que me é mais sagrado: o amor às palavras, aos horizontes largos e à alegria de viver. Ela nasceu do meu corpo mas é a minha alma que a reconhece.
Hilda Lucas
https://mdemulher.abril.com.br/bem-estar/colunistas/hilda-lucas/conversa-escuro-535779.shtml
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