Na janela de Deus
A melhor TV ainda é uma janela de ônibus. "A janela recortando os exatos segundos de um gesto qualquer e humano", é um verso do meu primeiro poema, aquele nunca publicado, infinitamente revisto e decorado - onde estará? Certamente, aqui dentro desta máquina, invisível fragmento digital...
Já parou pra pensar nisso, leitor? Antes havia um manuscrito ou o texto datilografado. Um pedaço de papel, enfim. Agora não há nada. Ou melhor, o que há é quase-nada.
Antes da impressão deste texto, por exemplo, o que há é algo impensável: ínfima flutuação eletromagnética registrada em 0 e 1 que nem se chega a ver sobre a superfície brilhante do disco rígido — em tudo semelhante a um CD comum. Microscópico, ínfimo, quase-nada, o lugar que esta crônica ocupa no disco não seria nem sequer um lugar — pois que lugar ocupa algo que nem se vê?
Isto que eu vejo agora estampado na tela como se fosse um papel em branco onde imprimo letras é pura ilusão. Reforcei esta ilusão instalando um programeto que acrescenta o som metálico das teclas da máquina de escrever ao teclado do micro.
Esta simulação digital do que ocorria antes no "mundo real" — papel, som metálico das teclas — é a manifestação primária, protozoária, do que a gente chama de realidade virtual e cuja expressão mais radical é a hipótese Matrix: a realidade não passa de uma simulação digital em escala planetária. Idealismo gnóstico e messiânico que se traduz assim: a realidade é uma ilusão produzida pelas forças do mal para dominar o mundo — e é preciso libertá-lo. Ou dito ainda de outro modo: o inferno é aqui.
Não é o que eu vejo nesta minha TV quando vou por esses dias ensolarados debruçado como um gato na janela do ônibus atento a tudo sem nada esperar, os olhos ávidos e generosos sorvendo tudo sem julgar. Não, não é um inferno, nem pode ser mera ilusão. Podia ser melhor, isso sim. E visto daqui, de dentro dos meus olhos em movimento, parece tão fácil...
Na minha TV o ser humano aparece como o frágil senhor de si mesmo, orgulhoso sonâmbulo, generoso egoísta que em troca de um pouco de conforto e segurança sairia abraçando a todos como irmãos... Essa é a impressão que me dá quando eu os vejo daqui, do alto da minha nave, as antenas dos meus olhos captando tudo, alimentadas de luz.
E que luz! Os dias que têm feito são uma festa para os olhos. Digo de todo coração, sem modéstia ou medo de errar: dá até dó trabalhar. Mas, se é pra ser, mais feliz é o barraqueiro de praia que o burocrata trancado na sala, a despeito de seus milhões. O sentido da vida? É continuar vivendo. A vida já é um sentido: sempre em frente que só se tem o presente.
"Tout droite, monsieur! Tout droite, monsieur!" — nunca esquecerei a velhinha, involuntária metafísica, me dizendo onde era a lavanderia.
Outro dia, uma menina me perguntou: "Você acha que eu tenho jeito?"
Todo mundo tem jeito. Viver é bom e nem tão complicado. É a imperdoável vaidade de se exigir a perfeição que degenera em culpa ou narcisismo, duas formas de cegueira. Não temos tanta importância assim. Ninguém tem. Nem mesmo aquele que nos lega uma obra.
Até digamos que só ele tenha importância. Mas só a tem depois, quando dele só restar a obra. Vivo, de si, para si e entre os seus, ele é como nós: tem de se esforçar para não sucumbir à culpa ou ao narcisismo.
Pecamos essencialmente porque pensamos que podemos a partir do passado, prever o futuro. Esquecemos assim de viver o presente, que é só o que temos. A inteligência não serve para prever indutivamente o futuro. Ela serve é para aprofundar o presente, para torná-lo mais intenso. É com esses olhos que ouço o mundo, ouvindo as coisas da janela do ônibus.
Antônio Caetano é carioca. Foi repórter, editor e redator de publicidade. É poeta e compositor.
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