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Solo Sagrado da Amizade

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Era um vizinho chato. Insuportável. Ranzinza.
Hilton.
Com nome de cigarro e de hotel.

Ao assumir o apartamento, fui brindado com uma carta de oito páginas por debaixo da porta, onde ele –o Hilton– explicava que não dormia devido à falta de mangueira do meu ar-condicionado.

Quanta solenidade. Por que não me chamou ou não mandou um bilhete? Oito páginas para relatar um pequeno incômodo é ócio, é carência espalhafatosa, é exercício literário.

Atendi ao pedido, e evitei a soberba de corrigir as vírgulas do texto.

Dois meses depois, ele reclamava do salto alto de madrugada usado pela minha esposa na época. Sim, qual é o problema? O problema seria se ela calçasse broxantes pantufas. Mas o pior é que não era minha mulher que incomodava, porém eu e as minhas botas argentinas.

Considerava o sujeito fresco demais, hipersensível, desocupado, com a tara de controlar os sons da casa dos outros. Com certeza, guardava uma vocação inata para síndico.

Não duvidava de mais nada. Em seguida, reclamaria que puxava a descarga forte, que tossia alto, que gemia estranho, que não deveria ligar o liquidificador antes das oito horas.

Cobrança excessiva gera paranoia, eu fazia questão de odiá-lo sem reservas e idealizava macumbas e unguentos pelo corredor do prédio.

Três meses depois, o encanamento de nosso rancor explodiu. Ele telefonou cobrando um vazamento no seu banheiro. Trocamos gritos e ofensas até descobrirmos a origem da infiltração longe de minha culpa e de sua responsabilidade – aconteceram avarias naturais da fachada externa do prédio.

Já não conseguia nem ser hipócrita e cumprimentá-lo no corredor. Não haveria conserto em nossa amizade. Jamais. Eu pensava nisso. Foi quando me apaixonei por Juliana em março.

Ela me disse que seu melhor amigo morava no segundo andar.

Que ironia.

Logo aquele insuportável.

Logo aquele ranzinza.

Ilton na verdade, sem o H, pois não era cigarro para tragar, muito menos hotel para oferecer hospedagem.

Minha namorada armou um jantar de reconciliação. Resisti, bati o pé com o salto argentino, terminei vencido.

Ilton mostrou-se educado e carinhoso. Um cavaleiro de rosto erguido. Se estivesse na Idade Média, seria um templário.

Não sofre com a espontaneidade. Abraça com força, chora e se emociona ao lembrar as reuniões dançantes com Keep Cooler. É engraçado e autêntico. Coleciona rolhas de vinhos como a gente, lê os mesmos livros, partilha medos iguais: quando pequeno temia mais perder a visão do que dormir no escuro.

Faltava-nos somente tempo para conversar – enfim via que somos parecidos, próximos, semelhantes. Eu o rejeitava por antecipação e cisma. Pela ideia de que vizinho irá nos incomodar um dia.

Ilton é hoje meu melhor amigo emprestado. Ele me deu um terço de presente com areia da Terra Santa. Veio com um bilhete:

– Pode pisar à vontade, é solo sagrado da amizade.

Vou rezar por mim. Para, na próxima vez, não ser tão preconceituoso.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 07/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17425


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