Retomando o final do texto da parte I:
Mas ainda que a percepção mais evidente do filme seja a retratação da doença coletiva pela qual nossa sociedade está passando, é possível compreender também a situação não como circunstancial, mas de uma forma mais abrangente: do ponto de vista Budista, esta doença, esta cegueira é mais congênita e menos epidêmica, menos acidental ou circunstancial, no sentido em que vemos ali o Samsara: a cadeia cíclica de sofrimento gerada pelo efeito de ações baseadas na ignorância. A ignorância básica existencial da percepção de quem somos de fato e da verdadeira natureza da nossa própria mente. Para esta dimensão de nós mesmos, somos absolutamente cegos. Coletivamente cegos. Existencialmente cegos.
Sogyal Rimpoche fala a respeito disso, no Livro Tibetano do Viver e do Morrer:
“Não há informações gerais sobre a (verdadeira) natureza da mente. (...) O assunto não faz parte da cultura popular. De fato, somos educados na crença de que nada além daquilo que possamos perceber com os nossos sentidos comuns é real. Apesar dessa negação maciça e quase generalizada de sua existência, temos às vezes breves vislumbres da natureza da mente. Eles podem ser inspirados pela elevação de uma obra musical, pela serena felicidade que experimentamos por momentos no contato com a natureza (...) podem surgir quando vemos a neve caindo lentamente, quando vemos o sol nascer por trás de uma montanha, ou quando observamos um raio de luz entrar na penumbra do quarto de modo misteriosamente tocante. Estes instantes de iluminação, de paz e sublime felicidade acontecem para nós todos e permanecem conosco de maneira estranha. Acho que às vezes temos uma meia-compreensão desses vislumbres, mas a cultura moderna não nos fornece nenhum contexto ou estrutura que nos ajude a entendê-los. (...) Assim, ignoramos aquelas que poderiam ser as experiências mais reveladoras de nossas vidas, se ao menos pudéssemos entendê-las. Esse é talvez o mais sombrio e perturbador aspecto da civilização moderna – sua ignorância e repressão a respeito de quem realmente somos”.
Ou como diz Padmasambava:
“Não entender a sua própria mente (a verdadeira natureza de sua própria mente) é um erro muito doloroso”.
Ignorância pertinente à nossa condição humana, ela é existencial: nascemos com ela e morremos com ela, porque estamos já imersos neste ciclo de ações originadas a partir da ignorância; mas ela não é inerente, intrínseca, no sentido de que é possível sair dela, da ignorância e, assim, sair do sofrimento. Assim, o filme é conceitual e não pessoal. Não há nomes. Ele não é particular. Ele não é histórico, nem biográfico. É filosófico. Fala de um mal que nos assola a todos (na verdade, o Budismo vai mais além, na medida em que entende não só o sofrimento do reino humano, mas também aquele experienciado por outros seres, de outros reinos, enquanto o filme se concentra na nossa sociedade).
Coletivamente cegos à nossa natureza mais profunda e essencial, as conseqüências são as que presenciamos nas fortes imagens do filme: as personagens não vêem o mal nem a destruição que estão gerando e assim continuam gerando, e é isso que é o Samsara: a repetição contínua, a recriação do sofrimento, por não se enxergar a raiz do problema. Todas as imagens que aparecem em decorrência dessa falta de visão são feias, grotescas, desesperadas e dolorosas. As personagens são vítimas da sua própria condição, causadoras da sua própria destruição, geradoras do próprio sofrimento, sem que o percebam. Ficam entregues à própria consciência, à própria escolha, ou à própria ignorância; nem imaginam a repercussão em grandes proporções e a devastação gerada porque não enxergam nada! É o que o Budismo chama de Tempos de Kaliyuga: um agravamento do Samsara. Tempos em que amadurece coletivamente o Karma das ações baseadas na ignorância, e experimentamos (coletivamente) o grave efeito delas. Só quem está enxergando o que está acontecendo é a personagem feminina, a mulher do médico, e o expectador (colocado na privilegiada posição de testemunho onisciente do drama). Caso não sobrasse no filme ninguém preservado, não haveria contraponto. Não é à toa que a única preservada, a única que testemunha toda a tragédia, é uma mulher. É o princípio Feminino. É a função do Feminino (que há em todos, mas que aparece representado por uma mulher). Não é por acaso que as únicas belas e tocantes cenas do filme envolvam os gestos femininos, o gesto de sair de si e ir solidária, ou sacrificialmente em direção ao outro. Ainda que cegas e sofrendo na mesma situação, as mulheres são aquelas que conseguem ter gestos de amorosidade, de solidariedade e delicadeza; de cuidado em relação à Vida e à Morte. Não é por acaso ainda que à mulher do médico e ao grupo que se forma se junta um cão. Quando não se pode confiar nos olhos, deve-se ter faro. Um faro que perdemos há tempos. O faro é o representante da nossa intuição, confiável guia.
Este artigo está dividido em partes: Ensaio sobre o Ensaio I
Leia o final do texto em Ensaio sobre o Ensaio - Parte III.
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Isabela Bisconcini é Psicóloga Clínica e Consteladora Sistêmica. Terapeuta EMDR. Terapeuta Floral, Reiki II, NgalSo Chagwang Reiki, AURA-SOMA. Deeksha Giver. Dedicou-se por 25 anos ao estudo da psicologia budista e prática do Budismo Tibetano. Participou do Centro de Dharma da Paz desde 1988, quando Lama Gangchen Rinpoche o fundou. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |