O Budismo nos ensina que o mundo externo é igual ao mundo interno e transfere o drama exterior à esfera do nosso mundo interno.
Ao assistir à Paixão de Cristo nesta páscoa (àquela antiga versão que nos acompanha desde a infância) vi descortinar-se à minha frente o épico que dramatizamos internamente há séculos e séculos. Nesta páscoa, o que pude perceber foi como massacramos e crucificamos a Verdade em nós, a nossa Verdadeira Natureza, a nossa Natureza Pura, toda vez que temos um pensamento, palavra ou ação de ignorá-la, não reconhecê-la, resistir a ela, não segui-la, traí-la, ou repudiá-la franca e abertamente.
Os judeus somos nós, quando, sendo iguais e da mesma natureza desta Natureza Pura, estamos tão perto dela, que não conseguimos reconhecê-la como fazendo parte de quem somos.
Os sábios do templo somos nós com a nossa mente intelectual, o conhecimento, mas também a soberba que advém disso. Somos nós quando nos prendemos a conceitos cristalizados, quando preferimos uma teoria externa e distante ao invés de presenciar, saborear e sentir a Verdade que se nos apresenta viva de momento a momento.
Os fariseus somos nós ao querermos barganhar internamente com apego e medo por temermos uma entrega verdadeira e desnuda à manifestação da nossa verdadeira essência.
O império romano somos nós ao levantarmos nossas defesas, nossos gladiadores internos, e ao gastarmos tanta energia em controle e resistência, para manter o ego intacto no poder, atacando francamente esta Presença pura.
Os apóstolos somos nós já com algum vislumbre de quem Somos e do que é a nossa verdadeira essência, mas ainda assim duvidando, traindo, negando, seguindo, ora sim, ora não, o que entrevemos como a Verdade, para por fim, uma vez que tenhamos sido definitivamente convencidos e tocados, trabalharmos ativamente por ela.
Maria Madalena somos nós quando sentimos um impulso de conectarmos haja o que houver com uma Presença que nos leva a nossa Natureza Primordial. Curioso e triste que esta qualidade seja vista muitas vezes, dentro de nós mesmos, como impura ou marginal. O aspecto do fogo e da paixão é tão dificilmente compreendido e, no entanto, nesta figura, a energia da chama representada pela paixão e pelo desejo, quando unida com a verdadeira compreensão de quem se É – a Verdadeira Natureza -, tem uma qualidade de união do feminino com o masculino, de energia com direção. Este impulso inicialmente é como energia sem direção que quando encontra o canal da manifestação acende e ascende. Outras tradições falam da questão da transformação do desejo e da Kundalini, mas sinto que a mensagem essencial de Maria Madalena é a da energia feminina que tem como qualidade a entrega fervorosa e apaixonada, o desejo canalizado, a chama que adere ao que é a Verdade em nós.
Maria mãe de Jesus somos nós quando, cientes da nossa qualidade intrínseca primordial, conseguimos dar abrigo a ela, deixar que ela cresça e tome corpo em nós e, mesmo quando a massacramos, conseguimos saber que, no fundo, ela em nós é algo inabalável e imaculável. Maria em nós é a percepção totalmente desperta desta nossa Natureza Pura, intrinsecamente boa, verdadeira e imortal e a devoção que vem com isso. Uma vez que ela é a mãe desta qualidade, sabe a Verdade em seu ventre, visceral e não intelectualmente.
Neste drama interno, temos ainda os ladrões que, lado a lado do Cristo crucificado, também estão fadados a morrer. São as vozes do ego, ecos da consciência egoica, que ora pedem provas, ora aquiescem e reconhecem o que presenciam.
E, finalmente, o Cristo em nós é aquela essência que se reconhece como AQUELE QUE É. EU SOU, Ele afirma. Ele é a consciência pontual, manifestada no tempo e no espaço, da Natureza Primordial. Ele a testemunha. E por saber-Se, permite-Se ir. Entrega-Se mesmo sofrendo, por nunca perder dentro de Si a Presença do Eterno, solo de onde Ele brota. Com um pé na realidade relativa, no descortinar dos fenômenos à sua frente, o outro pé na Realidade Absoluta, morre e renasce, vivendo o transitório e o Eterno em Si. Inspirando e expirando. Morrendo e renascendo na consciência de momento a momento. Ele é aquele que transita, que passa da esfera relativa ao Absoluto. Pulso da entrega. Confiança. Presença da Presença.
Desculpem-me pela interpretação livre e simplificada da Bíblia. A escrita é despretensiosa e não se propõe teórica, colonizadora, ou dogmática. Os termos usados podem estar conceitualmente errados, e os personagens desta História moram todos dentro de nós; o meu olhar foi pura e simplesmente o de perceber quais vozes internas apoiam a nossa natureza intrínseca e quais aquelas que se afastam de uma presença pura. Não pretendo fazer nenhum tipo de apologia a uns em detrimento de outros, posto que isso seria continuar a fazer o que desde sempre fizemos, historicamente e conosco: julgar e criticar. Aqui cabe reconhecer, aceitar, integrar, unir e amar os diferentes personagens dentro de nós. Afinal, foi isso que Jesus fez. Esses personagens são as diferentes facetas da nossa consciência em crescimento.
Que possamos, na medida em que nos reconhecemos como personagens ativos desta história, incorporá-la e realizá-la em nós, para que possamos reconhecer AQUELE QUE É dentro de nós, e a Realidade de que Ele nos fala.
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Isabela Bisconcini é Psicóloga Clínica e Consteladora Sistêmica. Terapeuta EMDR. Terapeuta Floral, Reiki II, NgalSo Chagwang Reiki, AURA-SOMA. Deeksha Giver. Dedicou-se por 25 anos ao estudo da psicologia budista e prática do Budismo Tibetano. Participou do Centro de Dharma da Paz desde 1988, quando Lama Gangchen Rinpoche o fundou. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |