A BOLHA DO TEMPO (Baseado no original de J. Cardoso – in memoriam)
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Autor Waldisson Cardoso
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 5/13/2010 12:25:25 AM
No ano de 1992, em um determinado cemitério, na ala de indigentes, cova 2.144, estava uma cruz com a seguinte identificação: O Serafim Andarilho. No livro de registros tinha como causa de morte atropelamento por uma carreta.
Serafim era um andarilho que sempre percorria um trecho da BR 060. Sempre gritando: Serafim, Serafim... daí ficou conhecido como o Andarilho Serafim.
Um certo dia quando vinha por um trecho da BR, avistei o andarilho. Parei em uma loja de beira de estrada logo em frente. Desci do carro e esperei pelo andarilho. Quando passou por mim o chamei:
-Serafim!
Com os olhos arregalados me olhou e respondeu:
- Eu não sou o serafim. Estou a procura dele. Você é o Serafim?
-Não. Mas gostaria de conversar com você.
Meio cabisbaixo veio e sentou-se ao meu lado, em um banco de madeira. Antes de qualquer conversa ele me pediu algo para comer. Levantei-me e fui até o estabelecimento comercial e pedi um misto quente e dois refrigerantes. O dono do comércio, como se já conhecesse o andarilho, disse:
- Se for para o Serafim pode levar dois.
Assim fiz. Levei os dois mistos e o refrigerante para o Serafim. Deixei-o comer e beber à vontade, antes de iniciar a conversa:
-Você disse não ser o Serafim. Então qual é o seu verdadeiro nome?
-Moço, ninguém acredita na minha história. Ficam rindo e zombando de mim. Por que quer saber?
Eu vou acreditar. Pode ter certeza que não irei rir nem zombar de você.
Pois bem, mais uma vez vou contar a minha história, espero que realmente acredite.
Com voz compassada e meio cansada, olhar perdido no horizonte ele começou sua história.:
-Meu nome completo é José Francisco Rocha. Sou motorista de caminhão. Em 1955 possuía um caminhão GMC, fazia frete entre Minas e Goiás. Ganhava um pouco de dinheiro, posso dizer que ganhava o suficiente para o sustento de minha família. Até consegui comprar casa própria.
Nesse momento fez uma pausa, como se sentisse saudades. Olhou para o céu e para o chão. Então continuou:
-Sabe seu moço, tudo corria muito bem. Até que, em 1958, começou um movimento muito intenso, era a construção de uma nova cidade. Passavam nesta região muitos caminhões carregados com diversas coisas para a construção da nova cidade. Aquilo me chamou a atenção, então procurei conversar com aqueles caminhoneiros procurando saber como entrar no transporte de cargas para a nova cidade. Orientaram-me a procurar o canteiro de obras e cadastrar meu caminhão, pois ainda existiam muitas vagas. Precisei trocar meu caminhão por um maior para conseguir os fretes. Mandaram-me transportar tambores de piche, ou asfalto, das refinarias de São Paulo para a nova cidade.
Ele fez mais uma pausa, pediu para esperar um pouco pois precisava ir ao banheiro. Voltou após alguns minutos e continuou.:
-Assim, seu moço, trabalhei vários anos. O dinheiro ganho dava para as despesas e ainda sobrava. Até pensei em comprar outro caminhão. Como as coisas iam bem! Quando tudo estava dando certo, ocorreu um fato que mudou tudo e toda a minha vida.
Nesse momento percebi lágrimas em seu rosto. Ele olhou para o horizonte, os morros em volta e continuou.:
-Sabe moço, acho que a ganância havia tomado conta de mim. Era correr e correr, passei a visitar menos a minha família, pois não podia perder tempo. A espectativa de ganhar mais dinheiro tomou conta do meu ser e meu espirito. Passei a ficar mais tempo nas estradas sem descanso, pois quanto mais tambores de piche entregasse, mais ganharia. Uma noite, com o caminhão carregado de tambores de piche, me senti com fome e demasiadamente cansado. Foi aqui, nesse mesmo lugar. Quando passei por aquela curva, avistei aqui um posto novo, bem iluminado, com uma grande placa que dizia “Posto do Serafim”. Nunca tinha visto aquele posto antes. Mas e daí? Precisava descansar. Entrei naquele posto, observei que uma das saídas voltava à BR que ia para a nova cidade. A outra, bem iluminada, contornava a direita do posto e desaparecia atrás de um monte coberto de vegetação. Era uma estrada bem pavimentada, com iluminação de ambos os lados que remetia a certa paz e harmonia. Assim que encostei o caminhão, veio um senhor de nome Serafim que me explicou que aquele era um posto novo, e estava sendo inaugurado naquele dia. Naquela região era o primeiro, mas em outras já havia vários postos como aquele. Desci do caminhão, pedi uma banho quente e um jantar. Após o jantar fui dormir. Pedi ao Serafim que me acordasse por volta das 4:30 da manhã.
Mais uma pausa. Um suspiro profundo e continuou:
-Na madrugada seguinte, após um banho e um café reforçado, chamei o Serafim e acertei minha conta. Na saída Serafim me informou que exista uma outra estrada para a nova cidade. Ele disse ser uma estrada nova e melhor, com uma distância menor. Eu disse ao Serafim que não conhecia aquela estrada. Ele me respondeu que não tinha erro, era só seguir pela direita. Pediu ainda para que eu não fosse pela velha estrada, onde não iria me dar bem. Ao acabar de falar foi atender outra pessoa. Mesmo com todos os argumentos e pedidos de Serafim resolvi seguir pela estrada conhecida. Quando entrei na BR senti algo estranho, não era o meu mundo. Os caminhões e carros que passavam por mim não se pareciam com nada que eu conhecia. Não eram as marcas ou modelos aos quais estava acostumado. Quando passou por mim uma carreta-tanque cheia de piche ardente, com maçarico aceso, senti um calafrio na coluna. Estava atrasado no tempo, ainda transportando piche em tambores. Quando cheguei na nova cidade, após cinco horas de viagem, não tive dúvida, realmente estava atrasado no tempo. A cidade estava pronta. Ao tentar apresentar a nota fiscal e entregar a mercadoria em um depósito, que já estava sendo desmontado, pois já haviam terminado as construções, a pessoa que me atendeu sorriu e disse – Você só pode estar de brincadeira, apresentando esta nota fiscal de 1958, quando estamos em 1992. Senti uma sensação de estar perdido no espaço e no tempo, novamento aquele calafrio na espinha. Fiz as contas 1992 para 1958, 34 anos se passaram. Daí você imagina. Perdi tudo: família e patrimônio. Havia dormido no posto do Serafim, não cinco horas, mas trinta e quatro anos. Só existia para mim uma solução: encontrar o Serafim.
O andarilho, ao acabar de contar sua história, saiu apressado chamando pelo Serafim e desapareceu na estrada. Após três anos voltei naquele lugar. Ao perguntar ao proprietário do comércio sobre o andarilho, foi me informado o seguinte.:
-Em uma manhã de sábado, dia ensolarado, o andarilho vinha descendo na beira do asfalto. Bem aqui em frente uma carreta desviou de um buraco e, descontrolada, bateu no andarilho, lançando-o longe. Nós corremos para lá, o andarilho estava de bruços no chão. O motorista da carreta parou e correu para junto do corpo caído e o virou. Ao ser virado, o andarilho fixou o olhar no motorista e disse: - Serafim, até que enfim te encontrei. Dizendo isto fechou os olhos e morreu. O mais impressionante é que o motorista se chamava José Serafim da Rocha, e dirigia uma carreta que transportava piche ardente com maçarico aceso.
Despedi-me do comerciante e segui viagem. Fiz uma prece ao andarilho e fiquei pensando nesta bolha, onde as pessoas ficam perdidas no tempo e no espaço.
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