A MORTE NÃO OBEDECE A SCRIPT...
Atualizado dia 29/11/2006 20:49:00 em Autoconhecimentopor Christina Nunes
Bial, sensível, saudoso, quase protesta contra a morte, de dentro desta mesma ótica. Diz que vamos muito bem seguindo o nosso dia cheio de planos, de contas para pagar, com um programa noturno com a namorada ou namorado; indo normalmente para o escritório num dia ensolarado, talvez que nem tendo se despedido com o devido vagar de um filho ou de qualquer pessoa amada... e, de súbito, de inopino, uma insuspeitada artéria coronária entupida subtrai isso tudo.
De improviso. Sem avisos. Deixa-se a vida pela metade, com um monte de coisas inacabadas: papéis por arrumar, um incontável volume de pertences pessoais que serão remexidos por terceiros que darão a tudo aquilo um destino; o programa com a namorada ou namorado fica pra lá, sem ao menos um beijo que seja de despedida. Os filhos; a família e os amigos; um sem número de sonhos e de projetos...Pedro Bial conclui que a morte funciona como um chiste máximo, como uma piada, mas das mais sem graça!...
É, meus queridos... a morte não obedece a scripts, ao menos no contexto confinado de nosso panorama material de vida, já que, sob a perspectiva da eternidade, tudo de mais importante que viemos fazer, e certamente, a partir disso, também a hora de se ir embora, foi predeterminado. Mas analisemos com calma e devagar virá a percepção de que a morte, neste sentido, é antes um ápice da vida. Porque a vida, meus caros - ah! A nossa vida também não obedece a nenhum script!
Quantas vezes me recordo da minha fase entre os quinze e os vinte anos em que gastava o tempo, volta e meia, elaborando e planejando o meu porvir, de dentro da minha então parca vivência e compreensão do mundo? De dentro de uma ótica inteiramente relativa e atrelada a um ângulo de visão originado num panorama que radicalmente se modificou, com o passar do tempo - e olhe que nem precisou que se passasse tanto tempo assim!
Lembro que costumava conversar com as amigas imaginando que aos vinte e cinco anos estaria casada com alguém assim assim, com um ou dois filhos assim assim. Queria a princípio ser médica, naquela época clássica em que de jeito nenhum nos achamos aptos a guardar certezas acerca destes pormenores importantes do nosso destino profissional; sonhava com "n" coisas das quais nem mais me lembro; e veio o tempo, e o que aconteceu?
Médica não sou; sou Escritora, e Técnica da Justiça. Não casei aos vinte e cinco, mas aos trinta e seis; os dois filhos homens - se não me engano era isso que eu imaginava que me aconteceria - não aconteceram bem assim; mas de um modo igualmente lindo e válido, com a vida me presenteando com um belo casalzinho falador que agita e dá cor aos meus dias.
É a partir disso que, gradativamente, a lição vem: a partir do desenrolar de meros detalhes cotidianos.
Quem disse que vou vestir amanhã aquele vestido in que me presentearam para o verão?! Deixo-o separado sobre a cadeira, e amanhece o dia debaixo de um bruto temporal, que, além de derrubar radicalmente a temperatura, ainda me força a calçar botas e jaqueta! E quem disse que continuo gostando hoje da mesma música que me fazia suspirar há vinte anos, e que jurava a mim mesma ser a minha música preferida para sempre?! Eu amava, por exemplo, aquela pegajosa Endless Love. Hoje a odeio. Pergunto a mim mesma, de vez em quando, como pude gostar de algo assim, a ponto de ter comprado, na época, o bendito disco!...
Melhores amigos somem, de improviso, sem aviso, sem maiores explicações, deixando-nos atônitos... e a tal amizade para toda a vida? Como reagirmos, afinal, a esta mudança de script, para a qual não estávamos emocionalmente preparados? Casamentos retumbantes que acabam; desafetos que de repente não o são assim tanto, embora jurássemos a nós mesmos, de início, que antipatizaríamos com aquela criatura até o final dos nossos dias...
Peço à empregada que me prepare uma macarronada, mas à noite chego em casa e me descubro com vontade de comer um mero sanduíche - e lá vai a macarronada para a geladeira... Colegas de trabalho vêm, e no melhor da convivência, lá se vão, arrastados por prioridades de ordem profissional - mesmo que há apenas dois meses não houvesse qualquer perspectiva de mudança, e orientássemos tudo no setor em função disso...
É uma infinidade de detalhes cotidianos, meus amigos, que nos comprovam que a vida não possuí mesmo script, nem ensaios; agimos e reagimos diariamente de improviso a tudo o que não fora planejado, e que não constava dos nossos projetos... ingênuo, portanto, é o que acredita estar no controle de tudo!
Penso que a morte, como manifestação máxima de um mero aspecto da Vida, na dança majestosa do Universo, mesmo nos casos supostamente precoces, como na passagem prematura de crianças ou de pessoas moças, é apenas coerente para com o que é e sempre foi inerente ao contexto da própria passagem dos nossos dias: mudanças mais ou menos radicais, constantemente nos colhendo de surpresa. Pois como o amigo que inesperadamente se foi do ambiente de trabalho, a morte não manda aviso; como o curso de Medicina que não fiz, a morte desvia rumos e enredos pessoais; talvez apenas que de maneira menos sutil, em virtude de tratar-se de um cume, de uma mudança crítica, intempestiva nalguns casos...
Desde o início de nossa estadia por aqui, morremos todo dia para algum detalhe, para alguma coisa que aconteceu fora do script. De fato, nenhum dia é igual ao outro - nada! Coisa alguma se repete de forma exatamente igual! E devemos estar prontos para vivenciar a próxima cena, cujo controle de todos os detalhes e nuances escapa ao nosso escopo.
De fato, Pedro Bial, sob este ponto de vista, a vida inteira pode ser encarada como uma monumental piada, onde lidamos constantemente com o inusitado. Mas é que as saudades e o apego são reações naturais à ausência decisiva de quem nos habituamos a ver todos os dias, e com quem contávamos interagir ainda durante um longo tempo.
É natural. Mas encaremos graciosamente este atributo da natureza humana, da nossa afetividade. O tempo atenua tudo, muda tudo, e a tudo esclarece e verte o seu bálsamo. Entendamos esta grande verdade: a morte não obedece a um script - mas a nossa vida, se bem analisada, também não. Não tanto como desejaríamos que fosse. A diferença é que durante a vida lidamos com ausências que fluem mais suaves no turbilhão dos dias: planos, expectativas. Ausências não tão drásticas assim.
A morte é faceta da Vida - mera nuance - como a face escura da lua, e, portanto, um seu atestado de permanência. Assim, façamos como naquela outra piada: ao irmos, usemos nos pés uma plaquinha, onde se lê: Volto Já!...
Com amor,
Lucilla
ok
Avaliação: 5 | Votos: 19
Chris Mohammed (Christina Nunes) é escritora com doze romances espiritualistas publicados. Identificada de longa data com o Sufismo, abraçou o Islam, e hoje escreve em livre criação, sem o que define com humor como as tornozeleiras eletrônicas dos compromissos da carreira de uma escritora profissional. Também é musicista nas horas vagas. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |