Amizades sem porquê - parte I
Atualizado dia 8/21/2006 2:36:31 PM em Autoconhecimentopor Fernando Cavalher
O que deveríamos preferir? Eu me pergunto... Já que consideramos o incômodo e o desconforto coisas tão negativas... O que deveríamos preferir? O “cômodo”? O comodismo. O “conforto”? O conformismo.
Prescindo de concordância (entre pessoas, bem entendido, não aquela da gramática). Não lhe vejo sentido. Divergências são mais criativas. Jamais aprendi qualquer coisa em situações de consenso. Uma pessoa afirma algo, a outra concorda. Surge uma sensação de identificação, de proximidade. Isso é bom, nada contra. É carinhoso. Faz-me muito bem. Já me curou, algumas vezes. É sentimento... Mas, aprender, não.
As opiniões que ouvi a respeito de meus trabalhos anteriores foram muito diversas. Orgulhei-me mais daqueles que me responderam: “O texto é difícil.”, em um tom grave. Daí para frente, eu queria ouvir a opinião, pois sabia que, para além da concordância, a pessoa havia considerado a visão de mundo apresentada. Com estes, discuti os pontos de vista, deles, alegremente, percebendo-me melhor, percebendo-os melhor, criando coisas novas para mim.
Com os outros eu não pude conversar, não porque eu os desprezasse. Mas, na medida em que - se é que leram - recusaram-se a proferir opinião clara, desconsideraram não somente sua própria opinião, mas também a minha. Tornaram impossível o diálogo no momento em que temeram que algo incômodo ou desconfortável pudesse surgir. Evitaram a discordância, realizando, assim... a discordância! Bem, paradoxos neuróticos à parte, passemos às questões mais sérias.
Hoje não quero falar sobre questões amplas, imensas, como as anteriores. Quero desabafar. Quero falar de minhas pequeninas questões sentimentais. Trato-as como às crianças; tento, ao menos. Ouço-as, considero suas nuances surpreendentes. Acolho-as em tudo que tem de bem e de mal. Aqueço-as em meu peito.
Amizades não têm porquê. Quando surgem, raras, vêm de substratos amorosos, constroem-se desinteressadas, como cabe bem a toda amizade. Senão, não é amizade. Não há razão para se gostar de uma pessoa, ama-se e pronto, como já disseram tantos. Depois que se ama, pode-se até descobrir no outro coisas que são agradáveis, a agradável concordância em temas comuns e, se houver um pouco de sorte, discordâncias, criativas.
Todavia, incomoda-me muito o fato de que as amizades quase nunca tenham porquê; aquele das perguntas. O “Por quê?” de uma criança de três anos. Que falta que isso faz. Tudo o que é preciso dizer está escrito no próximo parágrafo, o resto é apenas comentário. As questões profundas são expressas assim, brevemente, já que são auto-evidentes.
Muitíssimas vezes, quando converso com as pessoas e, sobretudo, com os amigos – com os amigos! – não me perguntam os porquês, minhas razões para minhas escolhas, para minhas atitudes. É isso.
Sempre que alguém me dá uma resposta sem saber de minhas razões sou imediatamente lançado em meu vazio. Minha alma se recolhe e eu fico desorientado. O desamor tem esta conseqüência sobre mim. Fico perdido.
Parece que existe algo como “erros psico-etimológicos” e “erros psico-epistemológicos” nas conversas entre as pessoas hoje em dia.
O primeiro erro – psico-etimológico – é um problema de linguagem. Pessoas diferentes usam as palavras diferentemente. Uma mesma palavra tem significados subjetivos diversos para cada pessoa. E, em conversas importantes, acho imprescindível que cada um se assegure de que sabe o significado que as palavras têm para o outro.
Mas este é o problema que me machuca menos.
O segundo erro, psico-epistemológico, este sim, talha meu coração como os cortes dos seringueiros do norte de nosso país. Falo de mim – sejam pensamentos, sentimentos, atitudes, decisões. O outro escuta e tenta entender-me no sistema de referências dele! É o eterno problema dos sistemas... Por exemplo, se a pessoa com quem converso é evangélica, sou biblificado: tudo aquilo que a Bíblia não aceita, e não são poucas coisas, é criticado em mim. Se é um cientista, todas as coisas que vivencio e que não são descritas pela ciência simplesmente não existem. Se meu interlocutor é mais velho, minhas questões são imediatamente reduzidas, pois não tenho a idade necessária para entendê-las.
Pouquíssimas são as pessoas que me perguntam qualquer coisa quando estou falando de mim. Um número ainda menor pergunta-me “Por quê?”. A maioria não quer saber aquilo que considero essencial para o entendimento do outro, para a percepção do outro, para o amor ao outro. Não tentam saber de minha história anterior, de minhas dores, de meus sofrimentos, de minhas dificuldades, de minha falta (eterna) de evolução espiritual.
Apenas ouvem e vão fazendo comentários baseados em sistemas – a Bíblia, a idade, as tradições e os cânones da ciência, esotéricos, legais e tantos outros. Decretam se estou certo ou errado. Se devo ou não pensar assim, sentir assim, decidir assim, desejar assim – se devo ou não ser quem eu sou.
Contei há pouco como me sinto, e não consigo reagir de outro jeito: fico com medo de conversar de novo sobre minhas profundidades com a pessoa e nossa relação se superficializa. Protejo as coisas que são crianças em mim.
Eu não penso que não devam ser feitos comentários diante de minhas histórias. Eu espero que eles sejam feitos, até mesmo críticas. Se não, por que eu desejaria conversar? Quero ouvir o que o outro pensa, necessito dele; às vezes, preciso de ajuda para me entender, para decidir.
Porém, anos de trabalho com pessoas em meu consultório de terapeuta holístico, conversando, consultando mapas astrológicos, ouvindo sonhos e, mais ainda, a esmagadora quantidade de erros de avaliação que cometi ao tentar compreender a mim e aos outros serviram para eu perceber o óbvio: as pessoas são únicas. A imensa maioria das pessoas sabe disso, racionalmente, ao menos. Então, por que não viver assim? Por que não tratar os amigos assim? Quem lê o que escrevo sabe que sou muito crítico. Opiniático, fui chamado uma vez. Mas quando vou conversar com alguém, guardo-me de pasteurizá-lo com sistemas. Proíbo-me de fusioná-lo a mim, usando meus sistemas de referências. Procuro ouvir a pessoa dentro da história dela, do ser dela, dos sofrimentos dela. Novamente: ao menos tento ao máximo, pois é impossível ser totalmente livre da própria subjetividade, do próprio ser; e nem isso é desejável. Não quero saber se ela está certa ou errada. Quero saber se ela está feliz. Todo sistema se já não começa moralista, acaba por se transformar em uma moral. Mas o ser profundo, ainda que subjetivo, sempre respeita a individualidade do outro.
Parte II
Texto revisado por: Cris
Avaliação: 4 | Votos: 29
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