Conto: Roda da Fortuna
Atualizado dia 10/13/2006 11:12:37 PM em Autoconhecimentopor Fernanda Petter
Cheguei em casa. Vivo sozinho em um apartamento pequeno. Na verdade, a grande maioria dos moradores de meu prédio é “single” o que confere ao edifício um silêncio estranho. Alguns ruídos de TV ligada até altas horas, vez ou outra uma festinha com ruídos de vozes abafadas e só. É tudo muito quieto. Encontro meus vizinhos no elevador onde trocamos cumprimentos rápidos e sorrisos amarelos, depois olhamos para o chão. Alguns possuem animais de estimação, principalmente cachorros e gatos, dizem que os bichos fazem companhia e ajudam a espantar a solidão.
Na realidade, sempre achei tudo isso uma bobagem, coisa de gente que não trabalha o que poderia trabalhar, não dá tudo de si, sabe? Veja eu, por exemplo, acordo às 5h15min da manhã, vou à academia, tomo banho e café-da-manhã por lá mesmo e às 8h começo a trabalhar. O dia é infernal, muitas reuniões, decisões importantes a serem tomadas tudo em cima de mim. É que tenho um cargo de confiança e o dono do escritório, meu patrão, precisa de mim; aliás, faço o possível para ser imprescindível, sabe? Meu chefe simplesmente não pode viver sem mim. Por isso, não tenho tempo para essa besteira de bicho para espantar a solidão; mal paro em casa, chego sempre umas 11h da noite, tomo outro banho, como um sanduíche e vou dormir, para começar tudo de novo no dia seguinte.
O que acontece é que sou muito ambicioso, quero ganhar muito dinheiro, muito mesmo, ser o mais novo milionário do mercado e para isso tenho que me esforçar. Desde muito jovem tenho esse desejo: ser rico e poderoso para mim é a única meta. Por isso trabalho tanto, nisso foquei minha vida. Pena que algumas pessoas ignorantes não entendam o que isso significa. Minha ex-mulher, por exemplo, começou a reclamar de meus horários e que eu não tinha tempo nem vontade de me relacionar com ela. Desde quando eu tenho tempo para ouvir esse tipo de conversa? Já vivo em reuniões o dia inteiro e ainda tinha que discutir a relação com ela quando chegava em casa! Que absurdo! Ela chegou até a dizer que não sabia para que eu queria ganhar tanto dinheiro, pois eu não sei aproveitar a vida, relaxar, ficar bem com alguém. Dizia que eu estava sempre tenso, nervoso e com algo para fazer. É claro! Vai que o dono do escritório encontra alguém mais eficaz que eu e me substitui. Não dá para arriscar!
Resumindo, minha mulher, ou melhor, minha ex-mulher foi embora, me abandonou. Acabei me afundando mais ainda no trabalho para não pensar mais nela e, no fundo, até que foi bom, pois não preciso mais depositar nada na conta dela, aquela história de sustentar a esposa, sabe? Fizemos acordo, dei a ela o que o juiz mandou e agora estou só por minha conta. O que deixei de dar a ela todo mês me ajudará a atingir meus objetivos mais rapidamente. Ela dizia também que não entendia como eu podia trabalhar tanto e abrir mão daquilo que ela chamava de “outras riquezas”; insistia que eu tinha que aprender a equilibrar as coisas.
Mas voltemos ao meu cansaço. Estou sentindo meu corpo pesado, não consegui ir à academia na última semana, quero dormir, ficar na cama, lembrei de minha mulher, ou melhor, minha ex-mulher, que sempre pedia para que eu ficasse mais um pouco deitado ao seu lado. Por um instante senti pavor em pensar que talvez eu tenha negligenciado meu casamento. Não, isso não é verdade! Cabeça, pára de pensar, é uma ordem! Eu sou uma máquina de fazer dinheiro, eu sou máquina de fazer dinheiro, de novo, eu sou uma máquina de fazer dinheiro e não tenho tempo para sentimentalismos. Acabou e pronto, tá acabado!
Sei que sou competente, pois o dono do escritório está milionário e disse que logo terei minha chance. Fico arrepiado só de pensar nesse dia! Um dia, eu devia ter uns dez anos de idade, meu pai chegou bêbado em casa, mesmo assim fui correndo abraçá-lo e ele muito irritado disse: “Sai daqui moleque inútil!”. Aquilo doeu em mim como uma facada. Desde então, tentei provar ao meu pai o meu valor: lavava seu carro todos os domingos, levava cerveja pra ele enquanto assistia futebol e não contava à minha mãe que ele andava com outras mulheres. Fiz de tudo o que eu podia, mas creio que meu pai morreu me achando inútil.
Sei que agora tenho uma chance, talvez a única da minha vida de ser valorizado. Quantos pensamentos! Minha mente não desliga, toda noite é assim. Tento dormir, não consigo, ligo a TV, desligo, tento de novo, olho para o teto do quarto, penso na minha mulher, ex-mulher, sinto o peito apertado, tenho muitas reuniões amanhã. Decisões que dependem de mim, aprovar orçamentos, desenvolver projetos, criar soluções. Esse sou eu. Eu. Eu? Dizem que sou muito criativo, invento ambientes agradáveis de ver e estar, tanto para morar como para trabalhar, qualidade de vida sabe? É isso, qualidade de vida.
Olho para o teto, lembro do remédio para dormir que tenho tomado todas as noites nos últimos dois meses, para ser mais preciso, desde o dia em que ela saiu de casa. Cama grande vazia é um saco! O vazio é maior que a cama. Toda noite tento dormir sem o medicamento, sou teimoso, não me entrego facilmente, mas lá pelas tantas da noite, como agora, acabo me rendendo e tomo. Espero meia-hora. Pronto. Sinto que a mente vai relaxando, os pensamentos se esvaem, durmo.
Texto revisado por Cris
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