DEVO TER SIDO FARROUPILHA...
Atualizado dia 3/27/2008 9:45:48 AM em Autoconhecimentopor Christina Nunes
Confesso nunca ter achado a menor graça em História do Brasil. Não sei se mercê de uma metodologia errada de ensino da época em que estudei, se por achar de fato o conteúdo desinteressante, na mesma proporção em que amava História Geral; o fato é que, de soma com todo o tempo estudantil e até aos dias de hoje - se bem que agora consciente dos motivos! - o fato é que o único episódio da História brasileira que de fato me empolgou foi o da Guerra Farroupilha, no Rio Grande do Sul!
Vocês acompanharam a série de tv? Para quem não conhece muito, fala da epopéia de Bento Gonçalves para que o Rio Grande conquistasse independência do então Império sediado no Rio de Janeiro, com todo o seu repertório de guerrilhas paralelas reivindicando o fim da escravidão, os problemas de impostos na produção do charque, do âmbito dos grandes latifundiários da época, etc. Mas o fato é que o assunto é por demais extenso para ser exposto aqui; de forma que, em termos concisos e para o que interessa, o que importa realçar é que em toda a história do país, aquele foi o único período em que brasileiros mobilizados por honradez e por amor de uma causa justa lutaram até a morte para defender seus direitos, com dignidade, heroísmo e fé!
Este é o espírito que me interessa evocar - porque, passando pela difícil provação que vem assolando os cariocas, com a cidade mergulhada na calamidade pública em decorrência de uma epidemia cujas estatísticas de baixas e de contaminações ainda se acham bem aquém da realidade, me ressinto justo dessa ausência de ideal, dessa pusilanimidade incompreensível que vitimiza toda a população de uma cidade gigantesca subitamente atirada num enredo de terror digno da Idade Média!
Onde está o espírito de cobrança dos direitos afrontados de maneira tão torpe? Onde está a erupção daquele fogo que promove não desgraças ou lutas vãs, por propósitos mesquinhos - mas que mobiliza multidões em clamor pelas vidas mesmas de crianças, ceifadas na flor da idade por uma virose em decorrência do descaso das autoridades para com o trabalho de prevenção e respectivas medidas cabíveis de longo prazo, numa urbe cujas características climáticas sempre se mostraram perigosamente propícias à proliferação do inseto vetor nas estações amenas, que aliás são o perfil dominante no Rio de Janeiro?
Onde está a indignação?! Onde estão as iniciativas eficientes quão enérgicas que exijam o que não é favor, mas obrigação daqueles que, via sufrágio universal, foram escolhidos pelo povo para zelar pelo bem estar de toda uma sociedade?
A declaração menos indecente foi proferida pelo governador do Estado: "a população é a menos culpada. Nós, autoridades, somos os culpados". Claro! Não há aqui que se isentar a responsabilidade parcial de um povo que ainda se mostra precário em princípios de higiene e de conscientização na hora de se abrir as portas aos (escassos) agentes de saúde que visitam as residências para o trabalho preventivo; mas há que se considerar que se trata de um povo maltratado, amedrontado pelos índices de violência assustadores da cidade, embrutecido pelo sistema mesmo que lhes é imposto através da falência completa da rede de segurança, de ensino e do sistema de saúde pública!
E que se há de dizer, nessas estatísticas das vítimas, das populações de rua? Não pegam dengue? Têm recursos para comprar repelentes e remédios? Têm acesso a qualquer tipo de hospital, mesmo que os da exaurida rede pública?
Se não são as insuficientes almas cristãs e anônimas que, no seu trabalho heróico, percorrem certamente as sarjetas desta imensa "Cidade Maravilhosa" em busca dos necessitados extremos de uma tal fase de horror, e o que se verificaria no Rio seria uma tragédia de proporções dantescas, com cadáveres expostos nos meio-fios, porque trata-se de uma doença insidiosa que mata em muitos dos casos, e não faz diferença entre aqueles que podem e os que não podem se tratar convenientemente!
Acho que nalguma das últimas reencarnações estive no Brasil mesmo e fui Farroupilha...
É por isso que nesta hora me ressinto do espírito de um Bento Gonçalves - eu, que acabo de experimentar pessoalmente, na família, as agruras amargas do que o Rio de Janeiro vive! Ressinto-me de um lugar, de presenças, de uma época em que a integridade humana, os direitos sociais mais comezinhos, a dignidade de mães, de crianças, do ser humano em suma, foram defendidos ao preço do próprio sangue contra as garras assustadoras do descaso político, da corrupção, do grau monstruoso de inconsciência que na sua negligência criminosa atentam contra tudo que é mais do que necessário, obrigatório à manutenção do bem estar e da soberania de um povo!
Lucilla
Texto revisado por Cris
Avaliação: 5 | Votos: 11
Chris Mohammed (Christina Nunes) é escritora com doze romances espiritualistas publicados. Identificada de longa data com o Sufismo, abraçou o Islam, e hoje escreve em livre criação, sem o que define com humor como as tornozeleiras eletrônicas dos compromissos da carreira de uma escritora profissional. Também é musicista nas horas vagas. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |