Encontros e desencontros do Caminho - Capítulo 11 - 1a. parte
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Autor Fernando Tibiriçá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 2/4/2006 8:44:43 PM
Capítulo 11
Dia seguinte, Juan foi para El Burgo Ranero. Eu fui até a estação de trem de Sahagun. Mais um monte de peregrinos, todos em busca de opções culturais, como ruínas, castelos e monumentos. De carona, na onda, fui com uma senhora francesa até Santas Martas, fora do caminho. Um lugar que existe no mapa por causa da estação de trem, a 10 quilômetros de Mansilla de Las Mulas. Ninguém na subida do trem para conferir o bilhete. Ninguém no trem para ver o bilhete. Ninguém na saída do trem para pegar o bilhete. Na chegada, ninguém na estação. Descemos e o trem foi embora. Aquela senhora só falava francês e eu, para ela, japonês. Ela era um tanque, perto dos 60 anos, roliça. Em Bagdá, na hora ela conseguiria acabar com a guerra. Mas ela era muito simpática e amável.
Na estação, ninguém. Ninguém mesmo. Nada. Calor imenso. Sol de arder qualquer parte do corpo. Como não tinha para quem pedir orientação, seguimos para o lado errado. Apareceu uma tia espanhola, também imensa, simpática e prestativa. Falou do caminho e aonde deveríamos chegar. A francesa não entendia nada. Eu, alguma coisa. Seguimos as instruções e caminhamos. A peregrina francesa marchava, respirando forte, não ofegante, mas puxava o ar com muita força. Fui no ritmo dela e, depois, no meu.
Chegamos na cidade. Me deu vontade de fazer um xixi. Ela seguiu. Fiz xixi, logo a alcancei e entramos na cidade de Mansilla de Las Mulas em pleno domingo. Todos comiam ou dormiam e nós marchávamos. Chegamos ao albergue, o ponto de encontro dos peregrinos, e ela encontrou a sua turma. Eu quis selar minha credencial, mas só depois das cinco. Aliás, era sempre assim, tudo acontecia depois das cinco e, em alguns lugares, não dava para selar a credencial.
Eram duas e meia e eu queria ir para León. Não esperei. A francesa ficou. Topei a parada dos 20 quilômetros a mais debaixo de um sol forte. O caminho se misturava com a carretera. Domingão na Espanha é como no Brasil: a família no carro, muita comida, bebida e a sogra para encher o saco.
Na estrada, o pessoal voava com os carros ou com as motos, um povo brega nelas, disparando em todas as direções. Foi aí que a bolha do meu calcanhar direito estourou. Os 20 quilômetros foram virando 40, 60, 80, 1.500... Mas consegui chegar em Leon, cidade que lembrava uma mini Buenos Aires. Era um elogio aos argentinos ou um castigo para os leonenses. No hostal em que fiquei, me deram um quarto e um banheiro assim: ou eu dormia ou eu usava o banheiro. Eles eram praticamente um só cômodo. Um pum bem dado interditaria toda a área.
Reclamei e me deram um lugar melhor. Tinha até terracinho. Desci para comer e o restaurante, que abriu às 9h, já estava fechado às 10h40. Não havia o que comer, tive que encarar uma salada russa e um bolo de batatas na cafeteria do hotel, onde 15 homens jogavam em máquinas eletrônicas, uma praga na Espanha, ou baralho. Todos árabes, do Norte da África. Alguns meio doidões, eu diria. O hostal, que era para os peregrinos, só hospedava um peregrino: eu. Então, um cristão e 15 muçulmanos. Eles vestidos normalmente, alguns de paletó, e eu de bermuda e havaianas. Segurei a onda. Horas depois, foram saindo e eu fiquei escrevendo. Todo mundo saiu. Um empregado começou a varrer. Paguei a conta e fui dormir. A maioria dos árabes urbanos na Espanha bebe, fuma e joga. Aparentemente usam drogas e não têm boas maneiras. Acho que eu incomodei porque parecia o mais típico peregrino cristão no caminho.
Liguei a televisão e vi um documentário sobre Santiago de Compostela. Na realidade, um filme dirigido por um alemão, uma equipe com gente de várias nacionalidades e artistas espanhóis. Um peregrino era ciceroneado por um policial e ouvia a insinuação de que Bin Laden poderia destruir a Catedral de Santiago de Compostela. Matéria longa sobre o filme e a sua produção. E eu no caminho.
Tranquei a porta e coloquei uma mesa encostada nela. Qual-quer movimentação, eu certa-mente ouviria. Nada. Dormi pra caramba. Dia seguinte, dei uma geral na cidade de León. Fui ver as coisas, conhecer o povo, cumprir o óbvio do bom caminho. No dia anterior, antes de chegar ao hostal, estive no albergue dos peregrinos, que ficava num convento. Selei minha credencial, fui bem atendido e ouvi as explicações das regras de um bom albergue. Música e canto na noite de domingo às 9h30, depois todo mundo dormindo.
Até as 8h, todos fora do albergue, não sem antes se alimentar com um bom café da manhã gratuito, a troco de uma contribuição. Nem todos os albergues fazem isso. No caso deste, era pura bondade das freiras. Aliás, as freiras eram incrivelmente gentis, simpáticas e bondosas na Espanha, tanto quanto no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Elas faziam mais que os padres, pastores, pregadores e o que mais for. Eram sempre figuras femininas que lembravam o melhor de nossas mães, avós, bisavós, tias e tantas outras figuras queridas do sexo feminino. Elas tinham um olhar gentil e uma percepção assustadora. Não dá para enganar uma freira. Andando pelas ruas em grupo, elas pareciam, ao longe, um bando de pingüins. Mas são, verdadeiramente, a presença da mulher na vida de Jesus Cristo.
Na catedral de Leon, tive uma sensação que não dá para descrever. Os vitrais, 1.800 m2 em toda a catedral, eram absurdamente lindos. O rosetón da fachada da catedral tinham uma estética medieval e simbolizava, na Idade Média, a roda da fortuna. Era magnífico. Visto do interior da igreja, ele tinha uma forma arredondada, claro, que lembrava uma mandala. Suas cores, vistas de dentro da igreja, eram esplendorosas. Azul, roxo, violeta, vermelho e lilás predominavam. Aliás, violeta e lilás existem nos vitrais e paredes de todas as igreja na Espanha. E eu adoro o violeta. O violeta da chama. Do eu sou, eu sou, eu sou a chama violeta. Do eu sou o que sou. E eu sou o que sou.
Apalpei as paredes. A comunicação interna alertou que as portas seriam fechadas. Lentamente, as luzes se apagaram e, de repente, só a luz do final de tarde penetrava através dos vitrais. É besteira tentar contar a sensação, o que vi. Inenarrável. Quem puder, que vá um dia até a catedral de León, seja de qualquer religião ou credo. Veja as paredes, a fachada, as figuras e os vitrais. Uma catedral de 1.303 DC, com, portanto, 701 anos consagrada como catedral. E o Brasil tem 504 anos desde o descobrimento.
A catedral sofreu vários abalos e conseguiu resistir, inclusive, ao terremoto de Lisboa, em 1755, que destruiu muito também na Espanha. Muitas ruínas do caminho, aliás, eram resultado deste terremoto de 1755, como as ruínas dos Castelos de Burgos e Castrojeriz. Como o terremoto aconteceu em Lisboa e feriu tanto a Espanha, só os geólogos podem explicar.
Saí da catedral e assisti a um espetáculo de teatro bem em frente. O povo se divertia e as crianças gritavam de alegria. Fiquei olhando admirado para o teatro mambembe e a fachada da catedral. Distraído e “viajando”, tomei um tapa na bunda de um garotinho de quatro ou cinco anos. Ele riu e eu também. Fui embora, fui caminhar pela parte velha de León e acabei parando em um restaurante na Plaza San Esidoro. Comi uma pizza, coisa horrorosa na Espanha, e fiquei olhando o povo passar. A grande maioria são velhos e conservadores. Os jovens são rebeldes e modernos. Um choque de cultura.
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