Encontros e desencontros do Caminho - Capítulo 16 - 2a. parte
Autor Fernando Tibiriçá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 2/18/2006 1:22:54 AM
Quase um acidente. Um padre passava dando a hóstia no corredor central, quando duas ou três mulheres baixinhas e gordinhas passaram por cima dos turistas e dos peregrinos, que pacientemente esperavam a sua vez para receber a comunhão. Elas não queriam esperar.
Uma delas foi voando, de boca aberta, na direção do padre. Os turistas ficaram assustados com aquela situação. Ao invés de estender as mãos para pegar a hóstia, preferiu escancarar a boca na direção das mãos do padre. Ele não teve muito mais a fazer a não ser lhe oferecer a hóstia, tendo o cuidado de lhe salvar os dedos. Outra baixinha decidiu voar por cima, com o filho arrastado pelas mãos. Quase derrubou os turistas e quase matou o padre do coração. Ele deu a comunhão e saiu rápido. A mulher que conduzia o padre quase estapeou a última baixinha. Os turistas e os peregrinos que viram a cena estavam entre abismados e incrédulos com tamanha ignorância e desordem. Não é assim que se vai pelo caminho.
Em 75, fui ao Rio de Janeiro para o último baile de carnaval no Teatro Municipal. Último mesmo. O Teatro ia fechar para reforma e nunca mais ouve carnaval por lá. A desordem e desorganização eram imensas. Parece que todos queriam vandalizar e não brincar o carnaval. Salão lotado, desfiles de fantasias. Enquanto isso, briga e pancadaria ao lado. A bebedeira era geral. Não havia segurança que desse conta da situação. Para se ter uma idéia, nos corredores e, principalmente, próximo dos banheiros, havia poças de xixi. Quando acabou o baile, eu estava sentado numa cadeira no meio do salão. Alguns amigos dançavam em volta de mim ou nas proximidades. Eu olhava aquele teatro e vi naquele baile que a decadência e a deteriorização já tinham chegado ao Rio de Janeiro. O Teatro Municipal não merecia um fim de festa tão lamentável. Que caminho.
A missa seguia e os seguranças da catedral já não conseguiam controlar nada. Cada vez mais gente entrava enquanto, lá fora, a chuva se transformava em tormenta com árvores sendo derrubadas, guarda-chuvas voando, gente se molhando, desastres acontecendo nas carreteras e barcos à deriva no litoral, segundo vi na TV depois. Parecia que o mundo ia acabar.
A missa estava para terminar. Era hora do defumador, que ficava preso a uma corda fixa no teto da nave principal, e era balançado em direção às laterais da catedral com uma força inacreditável. A corda chegava a encostar nos arcos laterais e toda a catedral era defumada, assim como todos os presentes. Tive a impressão de que a defumação melhorou o astral e o clima ficou mais leve. A catedral ficou mais gostosa. Quando a missa terminou, eu fiquei na igreja. Fotografei e assisti ao final de uma cerimônia numa das capelas. Aproveitei também para rezar na capela do Cristo Sacramentado. Depois, coloquei fotos de pessoas queridas em outra capela, onde ficava a caixa mortuária com o corpo de Cristo, único lugar em que, durante algum tempo, pelo menos, ninguém mexeria. Esse local, aliás, era próximo do altar da capela onde fica a Virgem de Pilar e uma pia batismal maravilhosa. Pedi saúde a todos que apareciam na foto e também para os que não apareciam.
Fui para loja anexa à catedral e comprei lembranças para as pessoas queridas. A lista aumentou e muito. Essa foi a única compra real da viagem. Lembranças da catedral de Santiago de Compostela e de toda a energia da catedral e do caminho. Estava muito cansado, queria tomar um banho e descansar. Peguei um táxi, a cidade ainda transbordava de gente e de água. No hotel, vi que estava quase sem dinheiro. Pedi para o motorista aguardar e comentei sobre uma loja de discos, onde gostaria de comprar os CDs do Luar da Lubre e do Kepa Junkera, música celta e basca de alta qualidade. Ele disse que conhecia a loja e que poderia me levar ao El Corte Inglês. Comprei os CDs. O motorista aproveitou e sugeriu um outro passeio – ele tinha levado alguns ingleses até Fisterra para queimarem as coisas que tinham usado no caminho. Tratava-se de um ritual pagão, que não fazia parte do caminho, mas muita gente ia até lá.
Fisterra ganhou este nome porque os romanos acreditavam que aquele ponto era o final da terra e que o Sol era engolido pelo oceano Atlântico ao entardecer. Os peregrinos queimavam os seus pertences sobre uma pedra na ponta do povoado, próximo ao mar, ao ar livre. Combinei que iríamos no domingo, se não chovesse. De qualquer modo, com vento e com chuva, não haveria como queimar nada. Além disso, eram quase 90 quilômetros além de Santiago e as pessoas normalmente iam à pé. Eu estava literalmente moído. Preferi descansar.
A Costa da Morte ou Costa de la Muerte é a zona mais ocidental da Galícia, em frente às bravas águas do Oceâno Atlântico. Durante a Idade Média, esse era o último pedaço de terra conhecida. Finisterre ou Cabo Fisterra era um lugar carregado de ritos e crenças pagãs por parte dos romanos desde o século II aC. Dizem que os discípulos de Santiago, apóstolo de Cristo, viajaram até a desaparecida cidade de Dugium, atual Fisterra, buscando autorização dos romanos para enterrar Santiago, onde hoje é Compostela. As autoridades, receosas, encarceraram os discípulos, que acabaram fugindo. Eles foram perseguidos e, quando estavam prestes a serem alcançados pelos romanos, cruzaram uma ponte, que acabou caindo justamente quando os romanos a estavam atravessando.
Depois do banho, liguei a TV e vi uma resenha das notícias da semana: um atentado no Egito, a morte de muitas pessoas, a insatisfação de grupos islâmicos. No Egito, eles são fortes, já mataram Anuar Sadat, o presidente do Egito que promoveu a paz com Israel. As imagens eram de um canal alemão. Naturalmente, não entendia o que falavam, mas as imagens falavam por si. Muitos israelenses morreram nesse atentado. Acho covarde o ataque a bomba.em qualquer circunstância, mais ainda quando atinge civis e turistas. Fiquei pensando porque Israel não poupava o mundo de tantos problemas. Que Israel devolva as terras aos árabes, conforme determinação de resoluções da ONU, promova o nascimento do Estado Palestino e crie um mercado comum em todo o Oriente Médio. Com alento financeiro e a perspectiva de vida, então, o mundo árabe fatalmente se acalmaria. Os fundamentalistas e grupos terroristas ficariam sem força e a paz reinaria no Oriente Médio. Em perigo, ficariam os regimes ditatoriais e monárquicos da região, principalmente os corruptos e corruptores. Mas esse seria um problema interno de cada país.
No hotel, fazia planos para 2005: queria visitar o túmulo de Jesus Cristo. Eu dependeria do meu preparo físico e mental e da atmosfera política da região. Gostaria de entrar em Jerusalém acompanhado de um palestino e de um israelense, de mãos dadas.
Eu precisava comer, mas não queria sair do hotel, que não tem restaurante. Resolvi caçar um sanduíche na cafeteria. Ainda pensava na viagem até Fisterra na manhã de domingo. Voltei ao quarto e liguei a televisão novamente, TV espanhola, mais especificamente, TV galega. Alguns canais só mostravam coisas de interesse da Galícia. Como em toda Espanha, cada província tinha a sua cara e buscava uma autonomia maior.
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