Encontros e desencontros do Caminho - Capítulo 2 - 2a. parte
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Autor Fernando Tibiriçá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 1/29/2006 9:33:29 PM
Enfim, o problema era deles. O meu, era o Caminho.
Próxima parada: a cruz que pertence ao Caminho e, portanto, aos peregrinos. Ali, eles deixam recordações, peças de roupas, bilhetes, etc. Deixei um cartão no meio de centenas de pedidos e lembranças. Novamente orei e procurei a referência do Caminho para poder continuar. A placa Roncesvalles não me dizia nada; sua indicação era confusa. Parece que alguém tinha mexido nela. Em muitos lugares a gente encontrava setas e placas mudadas intencionalmente. Alguns imbecis depredadores, ateus à toa ou seja o que for, perdiam tempo com isso. Ao invés de seguir pela montanha, voltei para o asfalto e fui embora.
E errei o caminho. Começou a chover e um jovem casal de franceses, que estava dando comida para alguns cavalos soltos num pasto não cercado, veio saber se eu precisava de ajuda. Eu já tinha andado mais de 18 quilômetros e não havia condições de continuar. Estava escurecendo, chovia, muitos raios, eu sozinho e no caminho errado. Pensei na minha casa, na minha cama, no meu filho... Pensei em São Paulo, há 12 horas e 10 mil quilômetros dali. Aceitei a carona e com eles voltei alguns quilômetros pagando pelo meu erro. Disseram que eu estava na rota errada e me deixaram no Refúgio Orisson, incrustrado nos Pirineus, cheio de alemães, ingleses, franceses e um casal brasileiro.
"Completo", é como eles diziam quando não havia mais lugar. Já estava indo embora quando me arrumaram um colchão no corredor, onde poderia dormir. O dono, uma figuraça basca, ouvia a música basca, celta ou meio medieval. Ainda jovem, seus olhos brilhavam quando falávamos sobre o país basco. O refúgio tinha apenas quatro meses de vida. O dono atendia, cozinhava, limpava, brincava e tinha um lugar deslumbrante! A vista era fantástica! Ele tinha feito um deck por sobre os Pirineus. Maravilhoso!
Tomei uma sopa deliciosa e comi um pedaço de carne. Agora, era banho e colchão. O chuveiro funcionava com moeda e a luz do banheiro acendia quando se abria a porta. Entre abrir a porta para acender a luz e aproveitar o tempo da moedinha, consegui tomar o banho mais rápido da minha vida e, com certeza, o mais doido. Era: acende a luz, passa o sabão; acende a luz, tira o sabão; acende a luz, tenta terminar o banho; acende a luz e acabou a água. Enxuguei o corpo com aquela toalhinha seca-rápido e fui me deitar no corredor, o único lugar do refúgio por onde todo mundo passava o tempo todo. E, durante a noite, todo mundo ia aos banheiros que ficavam justamente no corredor, já que os quartos não eram suítes. Era um festival de peidos, arrotos, suspiros e descargas. Parecia que tudo acontecia no meu ouvido. Gente de vários países numa olimpíada maluca. Não agüentei! Tinha que levar a medalha de ouro! Concentrei-me e o jantar do refúgio começou a aflorar. Levantei o cobertor, deixei os pés para fora e mandei. Mais de cinco ou dez, numa seqüência harmoniosa. Guerra é guerra! Em poucos segundos, o corredor ficou intransitável, silencioso e consegui dormir. Afinal, ruim ou não, o cheiro agora era meu. Ganhei a medalha de ouro.
No dia seguinte, todo mundo acordado, café da manhã na barriga, era hora do Caminho. O dono do refúgio achou sacanagem eu andar tudo de novo e me levou até a cruz para eu continuar dali. Segui pelo caminho certo, entre as montanhas, pisando em pedras, cercado de árvores. Caminhei até Roncesvalles desfrutando de uma visão esplêndida e de uma paz inimaginável. O caminho, agora, tinha a cara do Caminho. Reservado e silencioso. Só o barulho das árvores e o correr de alguma água. Ideal para pensar, fazer orações, encontrar pontos de referência ou marcantes no caminho e caminhar.
Ao me aproximar de Roncesvalles, começaram a aparecer placas onde se lia "Proibido Cães Soltos". Ao mesmo tempo, havia placas que pediam desculpas caso algo acontecesse. Como fui dono de um canil de cães Rotweiller e São Bernardo, conheci cães do mundo todo, inclusive dos Pirineus. Fiquei em guarda. Tinha que entrar na estrada asfaltada em um ponto onde todos deixam pequenas cruzes ao lado de uma capela. O calor era insuportável e a tensão por causa dos cães era muito grande. Estava sozinho. Ninguém na frente ou atrás. Bateu uma dor de barriga - certamente resquícios da sopa e do cozido do refúgio. Eu tinha que, urgentemente, achar um banheiro e temia que um cão aparecesse, rosnasse e eu me borrasse. Roncesvalles, tão perto e tão longe! Felizmente, nenhum cão apareceu. Entrei na carretera, que é como chamam a estrada na Espanha, e fui caminhando pelo lado esquerdo onde havia um bosque à minha esquerda – é sempre mais seguro se andar numa estrada pelo lado esquerdo. Nenhum latido, mas eu escutava um ruído estranho. Era a minha barriga e o meu intestino mostrando que eu tinha que escolher entre chegar a Roncesvalles borrado ou enfrentar o bosque com cães. Pulei o guard-rail, achei um arbusto, baixei as calças e fiquei aliviado. Se tinha algum cachorro por perto, foi logo embora.
Uma boa mochila sempre tem que ter papel higiênico que não pesa nada. Saí do bosque, voltei ao asfalto e, mesmo com o intenso movimento de caminhões, estava pronto para entrar no povoado. Fiquei pensando porque não havia banheiro nas rotas dos peregrinos, ao menos perto das cidades e povoados. São milhões de pessoas usando bosques, árvores, moitas há centenas de anos. Me senti ainda mais no Caminho.
Roncesvalles era tudo o que o pessoal de Campos do Jordão ou Petrópolis ou Gramado sonha e quer. Beleza arquitetônica, limpeza e riqueza cultural. A igreja e o altar eram indescritíveis. Aliás, todos os povoados ou vilas do Caminho eram lindos. O que temos no Brasil, com ar europeu, são show-rooms disfarçados de cidades. Não encontrei lugar para ficar. Roncesvalles possui apenas duas pousadas e um albergue para 100 pessoas que dormem lado a lado e usam o mesmo banheiro. Eu, traumatizado com a história do refúgio - a bem da verdade desde o avião com a história das bundas da ONU - não ficaria ali por nada neste mundo. Me aconselharam a ir para Burguete, dois ou três quilômetros depois. Para quem tinha andando um monte naquele dia e dormido em um corredor, mais dois ou três quilômetros debaixo do sol seria uma eternidade. Tentei arrumar uma carona ou um táxi. Voltei à igreja e fui conhecer o povoado.
Na igreja, o altar tinha me impressionado. Aproveitei para comprar a minha Vieira, o símbolo em forma de concha de Santiago que todo peregrino usa na caminhada. Agradeci a Deus por ter conseguido chegar lá e completado a primeira etapa do Caminho.
Consegui um táxi para me levar a Burguete. O motorista chegou, se apresentou, pegou as minhas coisas e fomos embora. Falei do hotel Burguete, mas eu queria um lugar calmo para estudar, refletir, pensar e escrever. Ele falou de uma pousada em Garralda, província de Navarra, de propriedade dele e da mulher. Garralda fica fora da rota de peregrinação. Topei e fomos para lá. As vilas, as aldeias eram lindas e o papo com o motorista foi para o lado do país basco, a educação dos bascos, como são trabalhadores...
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