Encontros e desencontros do Caminho - Capítulo 4
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Autor Fernando Tibiriçá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 2/4/2006 8:11:21 PM
Tomei meu café da manhã depois de um sono justo e viajante. A comida desde Saint Jean era farta e incrivelmente boa. A presteza e a simpatia da população cativava. É uma outra Espanha, se comparada ao que eu esperava. Do casarão, bati fotos do entardecer e do amanhecer. Peregrinos e curiosos passavam a todo instante por ali apenas para ver a antiga construção, agora tornada hotel.
Gostaria de não sair mais de lá. Vista maravilhosa e uma tranqüilidade absoluta, mas o caminho estava ali, na porta do casarão, e a aventura era ir até Pamplona, cidade cheia de riquezas culturais, misturas raciais e movimentação política intensa.
O casal foi comigo até a porta e nos despedimos.
Na ansiedade de chegar até Pamplona, após mais uma jornada estressante, debaixo de um sol absurdamente quente, errei a entrada e entrei na cidade, não pela entrada dos peregrinos, que é através de uma muralha que cerca a parte velha de Pamplona, mas por uma avenida qualquer. Mas, seguindo em frente por uma grande avenida, fui descobrindo a cidade. A temperatura beirava 40, 50 graus, era domingo, três da tarde. Mochila nas costas, sozinho e fora da rota tradicional, me deparava com velhinhos espanhóis, que assoviavam e abanavam as mãos para mostrar o caminho ou a rota certa. O caminho me mostrava uma outra cara da Espanha. Sem querer, fui parar no centro de Pamplona, numas ruas menos habitadas, onde moravam imigrantes africanos.
No percurso, me lembrei do taxista que havia me levado do aeroporto de Pamplona para Saint Jean Pied de Port. Ele estava de folga, não poderia me atender, mas mesmo assim, solícito, indicou um hotel por perto, para onde fui a pé. Mas não se tratava de um hotel como conhecemos e sim de pequenos lugares, onde todo o conforto está ao nosso alcance.
Uma recepcionista deliciosa me recebeu. Eu era um peregrino, mas estava vivo como homem. A mulher exalava sexo: cabelos pretos, pele clara, falando espanhol com biquinho... Fiquei com um quarto e, àquela altura, se ela me oferecesse a suíte presidencial ou o hotel todo, eu concordaria. Tentei arrumar argumentos, enquanto me instalava, sem chance. Com a presença de tantos turistas, o assédio deveria ser grande. E ela tirava de letra.
Queria comer algo, mas nas imediações do hotel, estava tudo fechado. Aos domingos, quase nada abre. Fui dar uma volta. Logo na esquina, tinha uma cafeteria. Entrei e me senti um verdadeiro ET. Ali só havia moradores das redondezas, meio que se confraternizando. Lugar para 30 ou 40 pessoas. Uma mulher veio me atender no balcão, depois de eu acenar várias vezes. Meio desengonçada e com os dentes escuros e cariados, disse que o lugar estava fechado, mas que eu poderia comer logo à frente, no outro quarteirão. Agradeci e saí rápido, ainda pensando na deliciosa recepcionista do hotel.
Fui ao outro bar e, para minha surpresa, era um bar temático. Tudo era rock´n‘roll - a decoração, a comida, a música e o público. Uma Disneylândia do rock. Tinha de tudo. Sentei numa banqueta no balcão, observei, comi e bebi. Pedi a conta e perguntei se poderia tirar umas fotos, no dia seguinte. O jovem gerente titubeou. Dei meu cartão do Manga Rosa e falei sobre o club e a música eletrônica no Brasil, em São Paulo. Falei de alguns DJs e, quando toquei no nome de Carl Cox, um dos deuses da música eletrônica, que se apresentou no Manga (aliás, o Manga Rosa foi o único club brasileiro onde ele tocou), os olhos do cara brilharam. Senti um prazer enorme. Dei o site do Manga e me despedi. Não precisava mais das fotos. Clubs de rock, já vi muitos, mas como o Victória Pub, do qual fui sócio, entre o final dos anos 70 e meados dos anos 80, nunca vi. Foi demais e dava de mil a zero em qualquer rock bar. Era único na originalidade do caminho.
O Victoria abriu em maio de 78 e eu entrei na sociedade em dezembro do mesmo ano. Meus sócios eram donos de uma loja chamada Freedom, que era moda e vendia incensos, brincos, túnicas e outras peças indianas, na época. Em dezembro de 78, eles estavam em litígio com uma sócia nessa loja e isto refletia no Victoria. Acabei transformando o Victoria em club. Com a minha presença e o sumiço dos meus sócios por causa da loja, fui aplicando algumas idéias e logo a casa se tornou um dos lugares mais transados de São Paulo.
Em 1980, arrendei as partes deles e pude criar um lugar que marcou época na noite do Brasil. Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Blitz e outros grupos se apresentaram pela primeira vez em São Paulo lá no Victoria. Fora as canjas do Supertramp, Kiss, Mikail Barishnikov, Queen e outros, que se arriscaram inclusive nas picapes, como DJs. Durante um período, tive a companhia de uma fêmea de chimpanzé, que me ajudava a recepcionar o público. O Victoria foi um lugar inesquecível, que se tornou um grande caminho.
Fui dormir sabendo que ia conhecer, no dia seguinte, as maravilhas de Pamplona. Acordei inspirado e encontrei na recepção outra espanhola tentadora. Digo outra porque, na rua, as espanholas são feias. Aviões são raros, mas mesmo as mulheres feias têm muito charme e muita simpatia.
O táxi me esperava, fomos dar um giro por Pamplona, cidade com mais ou menos 250 mil habitantes. Os povoados e aldeias do caminho até Pamplona têm uma população de 500 até 3.000 mil pessoas. Para nós, brasileiros, são cidades pequenas ou núcleos habitacionais proporcionais a um bairro de menor porte de uma cidade como São Paulo. Mas todos os povoados e aldeias espanholas eram encantadores. Modernas, limpas. Não se via pobres ou mendigos. Não se via polícia. Policiais passavam desapercebidos mesmo após o atentado de Atocha e mesmo com as comunidades muçulmanas presentes, onde eventualmente poderia haver algum fanático. Na faixa para atravessar uma rua, os carros paravam para você atravessar, sem guarda ou sinal.
Fomos até às muralhas da entrada da cidade, construções de centenas e centenas de anos, algumas com mais de mil anos, realmente belíssimas. Também fui conhecer a grandiosidade da Plaza Castillo. Estive no bar Iruña, que tem mais de 100 anos. A Plaza de Toros estava em reforma, mas pude ver o trecho por onde os touros correm, rua a rua, esquina a esquina até entrarem na Plaza de Toros. Ruas estreitas e charmosas. Pude ver a moçada de Pamplona batendo papo num dos trechos da cidade velha. Os modernos de Pamplona têm seu charme, seu estilo. Fui fotografando tudo até que cansei. Resolvi tomar um banho e fui a uma cafeteria e casa de massas ao lado do hotel. Comi bem, vi o povo e fui dormir impressionado com as cenas que vi na TV do atentado na escola russa. Que triste caminho.
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