Encontros e desencontros do Caminho - Capítulo 7 - 2a. parte
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Autor Fernando Tibiriçá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 2/4/2006 8:26:07 PM
Eu sabia que um casal de Rotweiller estava solto e que os outros cães, cerca de 40 entre adultos, filhotes crescidos e recém-nascidos, estavam quietos e presos nos seus canis. Minha sorte foi estar solto o casal de Rotweiller; se fosse um casal de São Bernardo, que são possessivos e quando estão em seu território são extremamente agressivos, o final certamente seria outro.
Com o revólver ainda no meu rosto, ouvi que era para eu descer do carro. Percebi o casal de Rotweiller deitado, quieto, observando a movimentação na penumbra, sem ser notado. Fora do carro, me vi frente a frente com quatro assaltantes armados, muro alto sem visão da rua e um casal de Rotweiller de prontidão. Dei a chave da casa ao mais doidão. Ele não conseguia se controlar. Enfiou a chave no bolso e depois disse que eu a tinha jogado embaixo do carro. Abaixei para eles verem que eu estava numa boa e o doidão chutou o meu ombro. Felizmente, como ainda estava aquecido por causa do treino, não senti nada. Levantei e dei um passo na direção dele. Outro encostou o revólver na minha nuca, enquanto o doidão se afastava. Eu continuava estranhamente calmo e paciente. Sem medo.
As forças estabelecidas na minha casa mais a minha fé me davam segurança. Quando saímos do espaço do carro e entramos no jardim, os cães atacaram. A fêmea pegou um deles enquanto o macho acuava o outro. Só que restavam ainda o que estava com o revólver na minha nuca e a mulher. Sob a ameaça de matarem os cães ou me matarem, dei ordem para os cães largarem os bandidos e irem para o canil. Com os cães presos, os bandidos estavam liberados. Os cães todos só rosnavam, mas não latiam. Abrimos a porta de casa, entramos e um dos assaltantes perguntou sobre o ouro e os dólares. Ri e falei para organizarmos o roubo, que eles iriam levar a TV, o som e coisas do tipo. Um deles viu um chaveiro do Exército e disse que eu era policial. Perguntei se, naquela situação, isso fazia alguma diferença.
Encurtando a história, fiquei com as mãos na parede do corredor e o revólver apontado o tempo todo para a minha nuca, enquanto os outros três roubavam tudo. A chance de reação era mínima porque eles estavam juntos. O que estava apontando o revólver para a minha cabeça perguntou o que tinha em um quarto fechado. Falei que era um quarto santo, que eu poderia abrir a porta, mas ele desistiu da idéia, pediu para eu não abrir. Ele viu meu cordão religioso, que mantenho sempre comigo e talvez por isso tenha desistido. Aproveitei e comentei das velas e imagens que havia espalhadas pela casa e pelo quintal. A partir daí, passaram a querer ir embora o mais rapidamente possível.
E foram e ninguém se machucou. Eles me deixaram amarrado com gravatas. Sem poder soltar as mãos, consegui dar alguns telefonemas com a antena do telefone que quebrei, presa na minha boca. Em 10 minutos minha casa estava cheia de policiais, advogados e seguranças do Roof, que ficava no 22o. andar do edifício Dacon. Os orixás e a energia da casa tinham resolvido tudo. Continuei no meu caminho.
A calma e a serenidade foram fundamentais para que não se criasse um ambiente hostil. Os quatros assaltantes conseguiram o que queriam ou o que puderam levar - coisas que são compradas em qualquer lugar - e meus cães não foram machucados, embora, talvez, tenham ficado frustrados por eu não ter permitido o ataque. Aliás, o São Bernardo é um cão de guarda, trabalhador, valente e disposto a tudo pelos donos. Os vários que tive eram uns palhaços com o pessoal da casa e extremamente bravos e agressivos com estranhos ou gente de fora. Todos eram grandes campeões, mas também excelentes guardas.
Sobre o São Bernardo, na década de 80, Stephen King lançou um livro, que depois virou filme, chamado Cujo. Esse era o nome de um São Bernardo enorme e querido que morava numa vila do interior dos Estados Unidos. Um dia, correndo atrás de um coelho, ao enfiar a cabeça numa toca, o cachorro foi mordido por um morcego que tinha raiva. Ele tirou a cabeça da toca, tentou limpar o ferimento e foi embora. Ninguém notou qualquer mudança no seu comportamento. Dias depois ele acabou com a vida de várias pessoas e com a paz no vilarejo. As cenas no filme são impressionantes. Um São Bernardo brincalhão que, sem querer, muda o caminho.
Ritmo puxado, mas a gente vai se acostumando. Vinte a vinte e cinco quilômetros por dia, a pé não é fácil, mas também não é difícil. É preciso manter o ritmo. Muitas pessoas de idades variadas conseguem sem muito esforço. Jovens sedentários passam aperto e setentões ativos tiram de letra. Percebe-se o bom desempenho dos europeus e australianos, mais ligados ao ecoturismo e, portanto, acostumados a andar nos fins de semana, em longas caminhadas. Eles têm um desempenho fantástico. Quando em grupos e, normalmente estão em grandes grupos, a coisa toda é solidária e espartana. Os quilômetros são engolidos facilmente.
Turmas vão com carros de apoio e muitos caminham sem mochila. O carro aguarda em pontos determinados para atender ao que for necessário. Há ainda os que vão de bicicleta e esquecem as suas preocupações pedalando. Nas subidas, ou pedalam ou andam. Nas retas, disparam e nas descidas, voam. Se quiserem, podem fazer três ou quatro etapas por dia. Chegam rápido e só param para fazer turismo no caminho.
No meu caso, a coisa é cômica. Não consigo dormir cedo. Minha ginástica ou preparação física acontecia, em São Paulo, quando dava. Meio barrigudo e vendo comida boa, não dava para manter o regime pedido pela nutricionista. O Caminho faço andando, sozinho, sem carro de apoio e muito menos bicicleta. Sou empurrado por Deus e não existe explicação. Só Deus sabe como os menos preparados, como eu, conseguem fazer o caminho. Posso tentar explicar: estou na faixa dos 50 para 60 anos, espírito de 30, aparência de 40 e poucos, problemas físicos e de saúde de quem tem mais de 45 e ainda sou um executivo noturno.
Eu caminhava com meias grossas e tinha alergia nas pernas (tive sintomas de flebite), a mochila apertava, machucou meus ombros. Até agora, perdi apenas uma unha do pé e, portanto, dá-lhe pomada, repouso e anti-inflamatório. Por isso me achava no direito de recuperar alguns atrasos com caronas ao atravessar zonas industriais ou centrais. Caso contrário, eu já teria desistido.
Quase 90% das pessoas começam o Caminho em Roncesvalles. Eu comecei em Saint Jean Pied de Port e atravessei os Pirineus a pé. Uma escada infinita. Uns 26 quilômetros. Quando cheguei a Roncesvalles, minhas pernas balançavam sozinhas. No refúgio de Orisson, aquele da “guerra” no corredor, durante o sono acordei várias vezes com câimbras nas pernas, nos braços e na mão esquerda. Achei que era algo no coração (em março de 1988 tive um “treco” no coração). Mentalizei e pedi a Deus para me ajudar. Não queria pedir socorro porque eu sabia que era uma reação ao superesforço feito. De Saint Jean Pied de Port até Roncesvalles era coisa para homem, segundo os bascos. E essa eu ganhei.
O Caminho não me deixou desistir. Com certeza, quando terminar o Caminho de Santiago de Compostela, vou voltar com o certificado de revisão e troca. Contra grupos, turmas, equipes de ecoturismo, atletas e franco-atiradores de todo mundo; nesta deu Brasil. E fui eu.
ok
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