MENINO DE ARGILA
Autor Hellen Katiuscia de Sá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 11/8/2006 1:49:09 AM
“De repente ouviu-se um relâmpago. Era o brado indescritível de um grito de amor. Mireya havia virado lágrimas da chuva cristalina que caia sobre o vácuo do céu cinza. Fora se deitar sobre a terra recoberta de espinhos para nunca mais voltar”, dizia a história contada pelo avô de Chico.
Num sertão extremamente árido, qualquer pingo de chuva excitava a imaginação daquele povo feito de argila machucada. Seus corpos enrugados e cozidos ao sol precisavam de um pouco de chuva para remodelar suas vidas de maneira mais suave.
Chico nunca tinha visto a chuva, aos sete anos de vida, imaginava como seria. Já tinha ouvido falar que eram pingos de água que S. Pedro deixava cair quando ia tomar banho lá no céu. “Então S. Pedro não gostava muito de tomar banho”, pensava o menino de argila.
Ele queria muito ver a chuva respingando o chão partido. Foi até a capelinha da vila falar com Ns.ª Sr.ª Aparecida. Infiltrou-se na igrejinha lentamente, como faz a água nas paredes velhas, e sob uma atmosfera amarela e ofegante, seus pezinhos rachados, machucados pelo sol, uniram-se a outros pés em novena lacrimosa por tempos melhores no sertão.
A criança olhou para a sua madrinha no altar, era assim que Chico se dirigia a Ns.ª Sr.ª Aparecida. Falou-lhe baixinho: “madrinha... queria tanto ver a chuva. Mostre-me como o banho de S. Pedro transforma a terra aqui embaixo...”. E com a leveza que somente as almas ingênuas são capazes de carregar em si, sorriu Chico esperançoso. Levantou-se. Saiu correndo atravessando as velas, véus e senhoras em oração.
Foi ao centro da fazendola de seu avô. Olhou o poço (sem água), olhou para os rostinhos magros das galinhas d’angola de sua avó, quando ouviu uma trovoada. Assim ficou o céu desde o meio-dia às quatro da tarde. Era S. Pedro preparando-se para o banho. O céu azul-anil agora dividia espaço entre o sol e pequenas nuvens fofinhas acinzentadas.
E quase ao fim da tarde, S. Pedro finalmente resolveu banhar-se. As gotinhas caiam divertidamente sobre todas as coisas terrestres. Chico pode ver o chão reavivando seu laranja-pálido em laranja-abóbora. Até o vento ficou friozinho.
Chico brincava com os pingos da chuva. Nutria-se da alegria do esquecimento. Sua vida miserável e faminta que levava no sertão, por instantes transformara-se em pedacinhos de esperança. Tendo o escasso alimento do espírito, o menino conformado e acostumado à fome, agradecia pelas migalhas gotas: “obrigado minha madrinha... muito obrigado”.
Chico Duarte da Silva morrera na madrugada seguinte por conta de uma forte febre. Como seu organismo era bastante desnutrido, não suportou o chuvisco que pegara na tarde do dia anterior, foi consumido por uma forte gripe. Mas antes de falecer, aconchegado pela febre do sertão, Chico disse a sua mãe que entendia porque S. Pedro não tomava muitos banhos, “é porque a água da chuva tem sabão e pode arder em nossos olhos...”
Hellen Katiuscia de Sá
07 de novembro de 2006
Avaliação: 5 | Votos: 3
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