Mestres de Ofício



Autor Nilton Salvador
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 2/23/2012 2:35:46 PM
Ao perguntar pela engenharia das tramas dos fios aplicadas em alguns trabalhos a venda na banca de artesanatos, a artesã contou-me entusiasmada sobre a descoberta daquele tipo de ponto de crochê, aplicado nas roupas da moda no tempo da monarquia no Brasil.
A curiosidade obrigou-me a ouvir sobre um assunto que eu só conhecia porque minha mulher é praticante da arte e, foi muito agradável ouvir aquela exposição. Bem feito para mim que nunca dei valor o merecido ao crochê.
O sentido daquela história ia muito além do rosto angelical, brilhante e desprovido de vaidade daquela artesã. Sobre cada ponto que ela descrevia representava uma doação de gestos físicos, armada de paciência e amor, resgatando artes para contribuir com o resgate da cultura de uma arte de crochê no seu país.
A artesã de rosto brilhante contou-me que ao levar seu conhecimento e suas aptidões manuais a uma instituição que promove a capacitação de pessoas para o desenvolvimento sustentável, ao perguntarem qual era a sua profissão, respondeu que era Mestre de Ofício.
Mestre de que: repetiu o cadastrador espantado.
Mestre de Ofício em crochê.
A profissão ou especialidade não constava entre a imensidade de profissões.
Sou obcecada pelos meus dedos, prosseguiu, pois que dos seus estereótipos nasce o meu crochê, contava ela.
Quando ela falou em estereótipos, senti um calafrio, já que instantaneamente me veio à lembrança o autismo, pois é rara alguma referência sobre a síndrome que não seja mencionado os estereótipos, ora das mãos, ou preponderantemente dos dedos.
Mãos de todos os jeitos. Belas, ágeis, elegantes, ásperas, sofridas, macias, fortes, finas, divinais, mãos de fada, mãos que se estendem, negam, apedrejam, que abençoam, interpretam monólogos, poemas, moldam imagens e escrevem um tema inspirado.
No autista os estereótipos como se fossem características, sempre estão presentes, nunca deixam de ser uma fonte de inspiração para se iniciar um tipo de tratamento, ou revelam-se como uma pista para a descoberta da síndrome ou ditar um diagnóstico.
Para a medicina, é mais fácil dizer que estereótipo, é a permanência em posição estranha, simplesmente.
A peça de crochê apresentava um impressionante volteio dos fios de lã para o ponto alto, que ao passar pelo mágico movimento do dedo polegar, gerava os pontos baixos, curtos, elegantes e distantes entre si, mas ligados por uma espécie de coluna vertebral, solitária na sua função de mestre de relacionamento, ligando as extremidades, fazendo uma pinça de ligação com os demais, formando uma estola artesanal de indescritível beleza.
Para que eu entendesse o mecanismo, a artesã pediu minha atenção para as funções do dedo polegar, que sem ele, em nossas atividades comuns, inúmeras coisas não poderiam ser feitas, dizia com a voz trêmula, quase chegando à emoção.
Entre elas não seríamos capazes de pegar um copo de água para beber, assim como, fazer o sinal de positivo ou negativo. Seríamos incapazes de pegar uma agulha. Além de ser o mais forte dos dedos, o polegar tem a extraordinária propriedade de ser o único que pode assinar pelo analfabeto.
É num lance praticamente invisível do polegar, que o giro das agulhas de crochê, faz o dedo indicador ter a função insubstituível de lançar o emaranhado de lã organizado no caos, sobre o grampo, a peça que sustenta os fios, aperfeiçoada para o uso específico de viabilizar o renascimento daquele modelo do tempo da monarquia, por iniciativa e criatividade da artesã, que viu num museu, o quadro da pintura onde à princesa Izabel - A Redentora, revela aquele adereço sobre seus trajes.
Colocados em outro plano, os fios crochetados surgem dos encaixes e das dobras como parceiros que se formam num conjunto de movimentos corporais, impondo autoridade através da beleza do emaranhado de cores, que ao completar sua metamorfose surge como adorno complementar de roupas femininas que primam pela elegância e bom gosto, se materializando como um verdadeiro ato de amor.
O dedo indicador é que nos mostra os rumos que devemos seguir. É o nosso socorro quando nos orienta nas entradas e saídas. É o único que só dói quando bate. Além de servir para resgatar artes seculares, é o maior colaborador do polegar na arte do crochê. É também o dono da verdade, pois é com ele que pedimos e impomos silêncio. Sem ele nossa autoridade se esvai, mas também pode nos revelar mal educados, arrogantes e estúpidos quando o colocamos em direção a alguém abruptamente em riste.
O dedo médio não se desvia do nível das articulações, pois responde pela beleza das mãos. Sócio do indicador é fundamental para o folheamento de livros, revistas e suporte para a escrita. Presta ajuda a todos, por isso merece o carinhoso tratamento de pai de todos.
Já o anular é o nosso dedo nobre. Nele é que são colocadas as honrarias. Nas formaturas, ele recebe o anel de graduação. No casamento se realça recebendo as bênçãos das alianças.
O dedo menor, também conhecido por mindinho, o quinto da nossa mão não deixa por menos o seu valor, pois contribui para a harmonia do conjunto. Houve época em que ele quis sair do sério. Deixou crescer a unha e por sua vaidade exacerbada foi punido. Como castigo tem a missão de limpar a sujeira da unha dos outros dedos, tirar a cera dos ouvidos, limpar as badalhocas grudadas no nariz e coçar os mais recônditos lugares do nosso corpo.
Mesmo assim não se humilha, não admite discriminações, e na medida do possível se nivela aos demais, pois é o único que permite que nossas mãos alcancem as teclas dos extremos dos instrumentos, onde as notas geram músicas de inestimável ternura.
É de se perguntar se alguma vez demos à devida importância ao conjunto dos dedos, pois eles é que formam as nossas mãos.
Com nossas mãos tudo fazemos. Manifestamo-nos, escrevemos, fazemos crochê, cirurgia, acariciamos e nos identificamos, mas em se tratando de dedos, tive que me socorrer da sua fisiologia e sendo assim não poderia deixar de fora os estereótipos muito comuns em autistas.
Quando encontrei aquela iluminada artesã, captei que das suas mãos, os seus dedos emanavam curvas de energia boa, e que cada ponto do seu crochê era uma união amorosa de um gesto motor-perceptivo-intuitivo.
Os estereótipos, não são gestos mecânicos ou impulsos elétricos das mãos ou dos dedos que devem ser tratados de maneira isolada, fio a fio. Na nossa ousadia pensamos que os dedos são provas de que tanto um autista como uma artesã crocheteira expressam a compreensão de que a sua serventia é uma divina expressão corporal.
São expressões silenciosamente eloquentes, reveladas através de um emaranhado de fios de crochê, que estes movimentos dos dedos, mestres de ofício, estereótipos autistas ou não, também podem fazer a luz brilhar, recebendo como paga apenas prazer puro pela aplicação do sentimento amoroso do dever cumprido.









Escritor amador - Articulista em jornais, revistas, sites, grupos e listas de discussão, do ponto de vista bio-psico-sócio-espiritual. Autor dos livros: Vida de Autista; Autismo - Deslizando nas Ondas; Deficiência ou Eficiência – Autismo uma leitura espiritual; Vivo e Imortal - Ensinando a Aprender; Adoção - O Parto do Coração. Brasileiro. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |