Um bom "não analista"
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Autor Celso A. Cavalheiro
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 7/2/2006 6:46:40 PM
Estou com raiva. Algo me incomoda. Não sei bem o que é. Certamente não é a seleção. Nunca tive maiores expectativas com relação ela.. O que me incomoda, desse jeito, então? Será que a vida não pode ser como a seleção, só razoável? Será que precisamos tanto de adrenalina para sentir que a vida vale a pena? Ou quem sabe sou eu que estou ficando velho e não quero ver, com clareza, que, com o tempo, a vida fica assim... morna?
É difícil... Esquece... Hoje não é meu dia ...Passa o vinho. Vamos mudar de assunto...!”
È bom quando você não é analista e pode ouvir um amigo, sem compromisso - uma alternativa caseira ao verdadeiro analista, tão escasso e tão distante da realidade da maioria.
Um ombro amigo pode fazer às vezes de um analista (se a coisa não for tão complicada) e os resultados, quando a amizade é boa e verdadeira, podem ser animadores e devolver-nos um pouco da paz perdida.
Um “não-analista” só precisa ter ouvidos e um bom coração - respeitar a dor do outro como se fosse sua própria - e ter um gosto por ajudar. Saber ouvir é uma arte. Saber ouvir, de graça, é amor.
“Não vamos mudar de assunto, não... fala!’ Disse-lhe num misto de curiosidade e solidariedade. ‘Estamos entre amigos!”
“As pessoas dizem que nos viciamos em adrenalina, por isso amamos os esportes, a competição. Eles servem para dar sentido e motivação a nossa vida, entre outras coisas, é claro... Mas quando o esporte não tem mais lugar em nossos dias; quando nem a seleção nos motiva, nem mesmo quando vencia - o que isso significa? Será que é porque estamos ficando, realmente, acabados?”
Meu amigo não me olhava. Cabisbaixo, parecia falar para ele próprio ouvir. De certa forma, me sentia aliviado. Naquele momento eu não saberia mesmo o que dizer-lhe.
“Quando percebemos que o mundo nos escapa do controle e cada vez precisa menos de nós’ - continuou ele. ‘Quando os filhos cresceram, o frio dói mais, e os olhares do resto do mundo se esquivam do nosso olhar; quando passamos desapercebidos e já não fazemos mais diferença para maioria; será que estamos com um pé na cova? Será que falta pouco para o desenlace... ?”
“Não sei...,’ disse ele com voz quase sumida - ‘ando me sentindo meio esquisito. Sabe aquele nó na garganta...? Dei pra isso agora! Tenho vontade de chorar sem razão; eu que nunca derramei uma lágrima na minha vida, nem quando meu cachorro, coitado, morreu atropelado por aquele caminhão ‘desalmado!’ ”
Meu amigo levantou-se e foi em direção a porta. Pensei em detê-lo. Mas... o que dizer?
“Acho que estou com raiva de mim mesmo... .’ Pedro (esse é o nome de meu amigo) decidira voltar e sentara-se ao meu lado, novamente. Olhar perdido no fogo da lareira... ‘Ando pensando um pouco nessas coisas de espiritualidade, sabe? Na verdade sempre tive dificuldade em acreditar no que vocês dizem...Nessa conversa toda; de que a vida deve ter um propósito maior ... - O curioso, no entanto, é que, às vezes, me pego pensando... E se tudo isso tiver um fundo de verdade!?
Odeio fanatismos. Como posso ficar dando ouvidos a vocês? O mundo atropelando a tudo e a todos e vocês falando em vida após a morte; em paz de espírito; em desacelerar e ver a vida de um ponto de vista diferente... Parece que estão sempre fugindo da realidade - por não saberem como resolver suas próprias vidas. Eu não tenho tempo pra isso; se eu parar o mundo me engole. ( Pedro se referia a mim e aos amigos que temos em comum). Estou, no entanto, tentando dar um sentido a minha vida e sempre acabo pensando no que vocês me dizem. Acho que estou pirando...”
De repente, num impulso, à queima-roupas, arrisquei um palpite: Você está apaixonado!
Pedro ficou pensativo por um longo tempo e ainda sem me olhar, levantou-se, lentamente, e foi embora, sem dizer uma palavra.
Um bom tempo se passou sem que eu ouvisse sequer falar desse meu amigo. Eu me sentia, de certa forma, desconfortável, por ter dito aquilo – mas, na verdade, fora a única coisa que me ocorrera naquele dia, quando eu também estava vazio e me sentia um mau amigo.
Um mês depois, encontrei Pedro de volta ao lugar de sempre, onde costumávamos trocar idéias sobre os mais variados assuntos. Ele me parecia outra pessoa. Estava quase feliz. Tinha o mesmo sorriso de sempre, bom e largo. Abraçou-me por um longo tempo e depois me disse: “Você tinha razão, eu realmente estava me apaixonando e não conseguia entender o que estava acontecendo comigo.”
Meu amigo era casado e tinha filhos. Fiquei um tanto sem jeito com aquela declaração. Teria eu colaborado para uma separação ou coisa parecida?
Pedro apressou-se em dissipar aquela dúvida: “Passei minha vida inteira dedicando-me a família, ao trabalho, e aos outros, de uma certa forma. Porém, os filhos cresceram e se foram. Passei um tempo afastado, e o trabalho até melhorou sem minha presença. Percebi, com um certo espanto, que o mundo funcionava sem mim - e bem melhor. Acho que entrei em depressão; por isso sumi por uns tempos.
Um dia lembrei-me de seu comentário sobre eu estar apaixonado. Pensei muito e então dei a volta por cima... Achei um novo amor e agora estou de volta ao mundo dos vivos.”
Embaraçado perguntei-lhe: “Quem é ela?”
“- Não é ela. È ele.’ Respondeu-me, sem relutar. Engoli em seco e arrisquei de novo: “Ele... Quem é ele?”
“- Ele sou eu... . Descobri que existe um mundo maravilhoso e inexplorado dentro de mim. E me apaixonei por isso. Agora quero saber mais. Quero explorar.
Passei anos organizando coisas e vidas alheias. Arrumei desafetos e muitos cabelos brancos. E agora que ninguém mais precisa de mim eu ia me enterrando vivo. Ainda bem que eu tenho um amigo como você, que me fez ver que eu ainda posso ser muito feliz; quem sabe até mais feliz do que antes. Graças a você eu encontrei um novo amor e tenho certeza que desta vez vai ser pra sempre...”
Às vezes, graças a Deus, um “não-analista” só precisa ficar calado.
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