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Um inverno sem fantasmas

Atualizado dia 6/27/2007 10:12:07 PM em Autoconhecimento
por Celso A. Cavalheiro


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A moça de suaves movimentos e olhar perdido que dançava na sala ampla e rodava como leve pluma diante de meus olhos incrédulos, tinha jeito de sereia. Não tocava o solo. Parecia embalada pela suave brisa de verão que embarrigava as cortinas de chita das janelas entreabertas. Ignorava a mim e aos poucos e velhos móveis centenários que se espalhavam sonolentos pelos cantos, testemunhas de anos de vida e história. Tinha longos e negros cabelos que se acomodavam mansos sobre seus ombros - prateados de lua. Não lhe via o rosto. Ouvia, no entanto, nitidamente a música que animava seu corpo envolto em pouca e transparente seda. Música que parecia brotar de seu corpo como se ele mesmo a compusesse ali com seus movimentos perfeitos. Música que não incomodava nem ao próprio silêncio e fluía mansa provando que ambos - o silêncio e a música - podiam coexistir em paz.

Eu sabia que a encontraria ali toda a noite e que ela fingiria não me ver. Sua indiferença, no entanto, não me incomodava nem um pouco. Quase sem respirar, escondido da lua num canto qualquer, eu me sentia seguro. Como criança que aguarda uma recompensa pelo comportamento adequado eu a esperava ali, calado, com o coração nas mãos. Sabia que ela viria na mesma hora, depois da coruja cantar três vezes no pau da porteira, na entrada da fazenda. Sabia que mais uma vez ela viria dançar para mim. Sim, era só para mim que ela dançava - embora parecesse que os olhos do universo estivessem todos voltados para aquele momento e lugar.

Todo ano quando o verão assomava no horizonte e emprestava à natureza um cheiro de vida nova eu corria para o campo para descansar meus dias e ali experimentava ser feliz. Amava a noite - mais que tudo - e costumava misturar-me às estrelas que caminhavam junto a mim, pacientemente, pelos campos e, às vezes, até se atreviam comigo num mergulho no velho açude. Perseguia pirilampos que antes do sair da lua desenhavam pacientes a estrada da minha volta. Apressava meu passo para chegar no velho casarão antes dos primeiros raios de lua. Meu coração pulava no peito e disparava em ansiedade incontrolável. Tinha certeza que ela viria. Mas temia mesmo assim.

A brisa cálida chegava primeiro. Sondava o ambiente sorrateira e abria caminho para a lua que, quase sempre, surgia de repente dentre as nuvens e precipitava seus raios bem no meio da sala - transformando as janelas miúdas em grandes holofotes a iluminar um pequeno e ao mesmo tempo majestoso palco. Depois as rosas davam na noite um banho de cheiro. E quando tudo estava pronto, impecavelmente orquestrado, ela ia surgindo lentamente como se seu corpo fosse se formando ali, aos poucos, do nada, bem no meio da sala. Trazia consigo a música dos anjos. O tempo parava e meu coração também. A noite negociara um silêncio com os bichos que eram, naquele instante, só ouvidos. Meus pensamentos cessavam e mergulhado num vazio indescritível eu me tornava parte de tudo ao meu redor e, de alguma forma, dançava também com ela. Sua silhueta delicada e indescritivelmente bela ia tomando forma bem na minha frente até ficar perfeitamente completa e, aí então, começava a deslizar suavemente por toda a sala ao som da divina música que certamente brotava-lhe da alma. Toda noite aquele êxtase se repetia. A música. A moça. A magia. E eu só queria segurar o tempo para que o verão fosse eterno.

O minuano varre o pampa de sul a norte cortando a pele e a alma do gaúcho. A geada esparrama seu branco véu sobre a pastagem e congela a vida. No inverno os dias se encolhem e a peonada volta pra casa mais cedo depois da lide diária. Ao redor do fogo de chão tomam chimarrão e conversam, enquanto a gordura da carne, gotejando na brasa, exala um odor agradável e aguça a fome. Os peões contam histórias de assombração, de escravos que viveram por ali num passado distante e à noite arrastam correntes, ainda presos pelo destino.

Perco o olhar no braseiro e sonho com o verão que já se foi. Um peão estende o braço e me alcança o chimarrão dizendo: "E o senhor, patrão, acredita em assombração?" Sorvo o mate quente e por um minuto fico calado. Logo respondo num linguajar bem típico: “Não, eu nunca vi um fantasma e, com este frio, duvido que algum se atreva aparecer por aqui.”

Texto revisado por Cris

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