Uma história de amor - continuação
Atualizado dia 9/25/2006 8:44:51 PM em Autoconhecimentopor Celso A. Cavalheiro
Uma tarde, no entanto, quando passeava em cima do muro de dona Mariana, toda faceira, enxergou meu pai deitado no tapete da sala. Seu coração balançou, as pernas afrouxaram e se não fosse as unhas afiadas teria despencado do muro e Deus sabe o que poderia ter acontecido. Meu pai, muito distraído, só ficou sabendo do fato no outro dia quando os comentários se espalharam: “Coitada, toda metida à besta e quase morreu por aquele vagabundo”. Diziam as más línguas.
Os dias que se seguiram foram muito difíceis para minha mãe. Não é fácil manter a reputação de bem comportada quando se está apaixonada. Mas minha mãe resistiu. Durante uma semana ficou sonhando acordada, andando pela casa como mosca tonta. Não conseguia pensar em outra coisa, chegou a perder dois quilos naquela semana. Até a música clássica que seu Valdemar escutava quando estava deprimido e que ela tanto detestava, arrancava-lhe, agora, longos e apaixonados suspiros.
Capitulo 3
Era noite de lua cheia. Um cheiro de verão se espalhava pelo ar. No telhado morno de zinco a lua refletia e tornava mais intenso o brilho negro do olhar de mamãe. Estirada sobre o zinco, reclinara a cabeça sobre as patas dianteiras. Não havia melhor jeito de sonhar.
Papai no conforto de sua casa, sentiu também uma vontade irresistível de sair correndo por sobre muros e telhados. Era a primeira vez que se sentia assim e embora não compreendesse o que estava acontecendo, voou pela janela como se tivesse asas e, em um segundo, se sentiu como a brisa que soprava naquela noite: suave, leve e sem rumo. Um cheiro diferente arrastava-lhe em direção a novos telhados. Lugares onde antes nunca tivera coragem de ir. Havia ouvido histórias de gatos malvados naquelas paragens e como não era dos mais corajosos nunca tinha ido lá para conferir. Mas hoje caminhava decidido e sem medo. Uma força incompreensível fazia dele, naquele momento, um gato de verdade.
“Quem é você? Eu nunca vi você por aqui... mas engraçado, parece que eu te conheço há muito tempo...” disse meu pai, atropelando as palavras, quando viu minha mãe estirada no telhado. Estava visivelmente nervoso.
Minha mãe levou um choque mas se recuperou a tempo: “Você não me conhece porque passa dia e noite dentro de casa lambendo o próprio pêlo e não consegue ver além do seu umbigo". Meu pai pensou em ir embora... “Não sai de casa numa noite dessas para ouvir desaforo.” Pensou ele.
Resolveu, no entanto, arriscar uma nova conversa: “Por que você já não gosta de mim se nem ao menos nos conhecemos?” Minha mãe não teve resposta. O nó na garganta, a música clássica, a lua, o cheiro de verão... quem pode explicar o amor?
Ficaram assim calados, um ao lado do outro, a noite toda, enquanto a lua mergulhava orgulhosa e satisfeita atrás das árvores em cima do cerro.
Capítulo 4
Minha mãe morava numa casa humilde a alguns metros da via férrea. E à noite adorava correr pelos trilhos, saltando dormentes e imaginando subir uma escada infinita. Corria até ficar exausta e depois se jogava na grama fofa e ficava assim, estirada, como se estivesse morta, horas a fio. Sentia prazer em correr livre e ia ao limite de suas forças. Parecia correr atrás de um sonho que nem ela mesma desconfiava qual fosse. Divertia-se como podia. Não conhecera luxo em sua vida mas nunca passara fome nem frio. Dormia dentro de uma caixa de madeira embaixo de um fogão à lenha e no verão ficava estirada no parapeito da janela da frente, olhar perdido entre as estrelas, como a esperar o inesperado. Tinha uma amiga com a qual conversava de vez em quando e a quem, às vezes, falava de seus devaneios. Amava seus donos, principalmente seu Joaquim, que sempre havia sido muito carinhoso com ela e a quem ela esperava todo o dia na esquina sempre a mesma hora, quando então ele voltava do trabalho.
Mas agora seus dias haviam se transformado. Desde que conhecera papai mamãe vivia com a cabeça nas nuvens. Já não corria como louca pelos trilhos buscando sonhos. Caminhava apenas, observando as flores nas barrancas. Bebia lentamente a água fria dos córregos como se bebesse a própria vida. Sonhava sim, mas sabia que seu sonho era real. Todo dia, enquanto esperava papai, fazia mil planos. Era muito bom não estar sozinha. Conhecia alguns defeitos de papai. Mas não era presunçosa e sabia que era melhor conviver com eles do que viver de sonhos impossíveis. Já não era mais uma jovem gatinha e aprendera a temer a solidão. Ela sabia que papai era o gato de seus sonhos e não iria perdê-lo por meia dúzia de defeitos sem importância.
Papai, por sua vez, não cabia em si de tanta felicidade. Vivia correndo por sobre muros, invadindo pátios, subindo em árvores e contando histórias que impressionavam até Bernardo, seu melhor amigo e o maior contador de histórias daquela região. Quando estava em casa ficava olhando para o velho relógio de parede, acima da lareira, esperando impaciente a hora de ir ver mamãe, e quase enlouquecia ao ver que os minutos se arrastavam.
O tempo parece parar quando se espera um grande amor. Mas não havia outro jeito, pois mamãe não admitia que ele viesse a qualquer hora, pegava mal para uma gata de família, costumava dizer. Nunca havia sentido aquele aperto no peito, aquela vontade de chorar sem razão, de agradecer a tudo e a todos, como se o mundo inteiro estivesse tramando aquela felicidade. Sempre fora feliz na casa de seus donos. Mas o que estava sentindo agora ia muito além do que ele jamais imaginara pudesse ser a felicidade. Queria viver. Precisava viver. Tinha a impressão que uma vida inteira não seria suficiente para gastar aquela força infinita que carregava no coração. Havia perdido o medo e era capaz de enfrentar de cara erguida qualquer um daqueles gatos impiedosos que um dia pareceram-lhe tão ferozes e ameaçadores.
Quando não estava com mamãe, papai ficava parado na esquina rodeado de gatos de todos os pêlos e dava-lhes longas aulas sobre respeito, coragem e dignidade. Dizia a todos que deviam esperar mais da vida pois a vida só é generosa com quem espera mais dela. Havia se transformado num filósofo e para todos tinha sempre uma palavra encorajadora, de alento e de otimismo. Ninguém era triste perto dele.
Irradiava ternura e esperança como se tivesse vivido muitos anos e acumulado experiência e sabedoria. E tudo isso por causa do amor que havia descoberto com mamãe. Sabia agora que não poderia mais viver sem ela.
Texto revisado por Cris
Avaliação: 5 | Votos: 7
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