Uma história de amor - continuação
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Autor Celso A. Cavalheiro
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 10/19/2006 8:27:57 PM
Capítulo 19
“Não tenha pressa em terminar a história, eu disse ao gato velho. Tenho muito que pensar. Acho que meu pai e minha mãe me estão ensinando com sua própria história, mais do que o fariam se eu os tivesse conhecido. Muita coisa já mudou em mim. Mas eu ainda tenho muitas perguntas. Quero andar e pensar. Estou descobrindo que perdi tempo demais com tristezas e lamentos. Quero pensar como vou recuperar o tempo que perdi.
A chuva havia feito uma poça d’água na calçada. A lua dançava nela sacudida pela brisa suave. Quando vi minha imagem refletida na poça d’água levei um susto. Virei-me pensando haver outro gato junto a mim, mirando-se na mesma poça d’água. Eu mal podia reconhecer-me. Aquele gato feio, meio cego de um olho e que vivia como um mendigo na padaria de Seu José, nada mais tinha a ver comigo. Meu pelo havia crescido e brilhava à luz da lua. A névoa, em meu olho, havia se dissipado e eu enxergava mais longe e mais claro.
Voltei correndo em busca do gato velho que já me esperava sentado na frente de casa. Antes que eu dissesse qualquer coisa ele me disse: “Sua alma mudou e quando a alma muda, o corpo muda. Você está refletindo por fora aquilo que você é por dentro. Você está parecido com seu pai quando era jovem.” Ficou um pouco em silêncio e depois acrescentou: “Venha, vou mostrar-te uma coisa.”
O gato velho levou-me para baixo de um poste onde uma luz enfraquecida iluminava o chão molhado. “Olhe para mim, disse ele. O que vez?” Levei o segundo choque da noite. Ao olhar nos olhos do gato velho percebi, imediatamente, uma luz maravilhosa que jorrava de dentro deles, com a abundância com que uma fonte jorra água fresca. Arrepiei-me todo quando percebi em volta de seu corpo, antes cansado e franzino, uma luz um milhão de vezes mais resplandecente e bela que a luz azul dentro do balcão frigorífico de Seu José. Vi, pela primeira vez, que ele não era um gato velho, como eu sempre o vira.
“ O que fizeste, como podes ter remoçado tanto, perguntei-lhe incrédulo. “Eu continuo o mesmo, disse-me ele - com a voz mais doce que eu jamais ouvira - tu és que me estas vendo com teus novos olhos. Tu passaste a me ver agora, com os olhos da alma e a alma só tem olhos para a eternidade. E na eternidade não há velhice.
E a morte amigo - a qual sempre temi - o que significa? perguntei-lhe, de repente, sem entender bem o que estava perguntando. Emiliano sorriu e falou-me com a convicção dos sábios: “A morte é como as férias de verão das crianças, quando elas precisam parar e descansar para depois começar um novo ano. É como o sono diário que serve para repor nossas energias e depois nos entregar uma nova manhã para continuarmos à busca de nós mesmos.
Capítulo 20
O gato gordo corria como um louco pela via férrea. Havia descoberto o gosto da liberdade. Sabia que não precisava de mais nada além do silêncio, do vento e do amigo com quem ele corria. Num lago - a beira dos trilhos - beberam da água fria e jogaram-se nela para provar que não havia mais medo em seus corações. Escutaram os pássaros, o barulho do mato e da fonte. Correram atrás de lebres só para assustá-las. E, finalmente, adormeceram em baixo de uma grande árvore que os abraçou com a sombra mais fresca de suas vidas. Dormiram e sonharam. Cada um o sonho mais impressionante e mais real, além da mais criativa imaginação.
No dia seguinte o gato gordo disse a meu pai: “Sabes, tudo a nossa volta é exatamente igual ao que sempre foi. Passei anos de minha vida andando nesses lugares e nunca vi tanta beleza antes. O que foi que me aconteceu? O que fizeste comigo?
“Nós éramos cegos, amigo. Não víamos além de nossos olhos embaçados. Éramos espectadores da vida. Hoje fazemos a vida que queremos. Descobrimos que somos amados a medida que aprendemos a amar. Que somos belos a medida que conseguimos ver beleza nos outros e na natureza. Aprendemos que a vida concorre a nosso favor e jamais contra nós. Por isso, tudo parece diferente. Descobrimos que não é justo esperar que a vida nos sirva mas que é mais importante servir a causa da vida. Pois só esperar trás a desesperança. Aprendemos que é só quando se anda que o caminho existe, que o destino se faz. Que é o olhar que inventa a paisagem. Aprendemos que a dor pela dor não existe mas que ela é como o arado que rasga a alma da terra para fazer brotar dela vida ainda mais bela.
“Amigo, disse o gato gordo, com voz embargada na garganta. “Vou me separar de ti por uns dias. Quero andar sozinho, para ter certeza de que não estou vivendo à tua sombra. Para ter certeza de que eu também posso ver com meus próprios olhos. Te encontro lá adiante.” E com passos lentos e firmes pegou um atalho e desapareceu no meio da mata.
Papai entendia muito bem o gato gordo e o deixou ir. Nunca mais se sentiria sozinho, pois sabia que os verdadeiros amigos não são os que permanecem do nosso lado o tempo inteiro, mas aqueles que moram para sempre em nossos corações; como Bernardo que lhe havia ensinado o valor da vida, que lhe havia mostrado, um dia, quem ele realmente era. Se ele era um novo gato hoje, devia isso a Bernardo que, embora distante fisicamente, não saia um só minuto de seu pensamento.
Papai seguiu caminhando em paz na doce expectativa do milagre que ele sabia, iria acontecer a qualquer momento.
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