Uma história de amor - continuação
Atualizado dia 12/10/2006 21:46:36 em Autoconhecimentopor Celso A. Cavalheiro
Felício amava o verão. Sentia-se mais livre nessa época. Amava os pirilampos que julgava fossem pedacinhos de estrelas e com quem brincava de esconde-esconde todas as noites. Fazia longas caminhadas pelos campos e, às vezes, sentava-se na porteira do curral e ficava observando as estrelas. Costumava imaginar que uma delas, um dia, cairia bem no meio do campo, para que ele pudesse brincar com ela, pois apesar da boa vida sentia-se muito solitário, o coitado.
Naquela noite afastara-se um pouco mais em busca de uma estrela que jurava haver visto cair perto da barragem. Um risco de prata no céu e um mergulho silencioso na barragem era tudo o que ele sempre sonhara a respeito daquelas estrelas. Uma pequena luz agora acendia e apagava na raiz de uma árvore, como um pirilampo com carga dobrada.
“Minha estrela!!”... disse Felício quando viu mamãe, engolindo um nó de felicidade. “Eu sabia que um dia te encontraria!”
Mamãe mal conseguia falar. “Eu não sou estrela”, disse ela, com a voz trêmula pela fome e cansaço. “Sou uma simples gata faminta e cansada.” Felício não a ouvia. Corria como um louco em volta dela. Subia a árvore que mamãe usava como abrigo e se jogava lá de cima como um desvairado. Rolava-se no chão de um lado para outro como se fosse uma bola e depois ficava calado por um longo tempo olhando fixamente para mamãe e, de vez em quando, com um ar incrédulo e voz emocionada, repetia baixinho: “Minha estrela!”
“Era só o que me faltava”, pensava mamãe, “um gato maluco para me atazanar a vida.”
Capítulo 15
A rua estava deserta como quase sempre à noite. Um pedaço de lua no céu se intrometia entre as nuvens escuras e as árvores e desenhava na calçada figuras estranhas. Pela primeira vez eu me sentia confuso. Não sabia o que pensar. Desejara tanto saber a respeito da minha família, saber quem eu era e de onde vinha mas, naquele momento, um arrepio de medo percorria a minha espinha. Minha mãe havia encontrado um outro gato que se apaixonara por ela e colocava em risco a felicidade dela e de papai. Preferiria que o gato velho não tivesse me contado essa parte da história. Acho que ainda não estava preparado para ouvir toda a verdade. Também, há tempos ele não me falava de papai. Parecia estar escondendo alguma coisa. Às vezes parava no meio de uma frase e ficava calado, com o olhar distante, perdido em seus próprios pensamentos. Parecia tentar consertar o passado para não me fazer sofrer.
Pela primeira vez eu estava com medo. Não queria ver o gato velho por algum tempo. Só queria pensar. Não tinha mais certeza de nada. Talvez fosse melhor não descobrir o resto da minha história. Ninguém poderia me garantir que eu seria mais feliz daqui para frente.
Um homem na esquina caminhava de um lado para outro como se estivesse aflito à espera de alguém. Rodava um guarda-chuva na mão direita e parecia nervoso. Será que ele estava tentando descobrir sua história também? Será que ele também não sabia quem era?
Por uns dias não voltei para casa. Estava com medo do gato velho ou de mim mesmo, não sei. Estava, também, começando a sentir pena de mim e isso é muito perigoso. Andei sem rumo pelos campos e estradas. A fome e a dor no corpo me ajudaram a decidir. Tinha que ir até o fim. Afinal, não saber a verdade não iria modificar o meu passado. E, talvez, conhecendo-o totalmente eu pudesse me tornar mais forte para enfrentar o futuro que, naquele momento, não podia prever.
Capítulo 16
“Seu pai”, começou o gato velho, em voz quase sumida, “deixou a tristeza tomar conta de seu coração. E quando deixamos a tristeza tomar conta de nossos corações, só encontramos mais tristeza e infelicidade em nosso caminho; é preciso lutar muito e descobrir um motivo para ser feliz mesmo quando a vida insiste em nos judiar.” Disse-me o gato velho, com a propriedade de quem conhecia a vida como poucos.
Papai costumava sumir por vários dias e quando voltava parecia um cadáver de magro. Vivia sujo, não se importava com mais nada. Ninguém sabia onde ele ia nessas caminhadas estranhas. Certa vez Bernardo encontrou-o estirado no meio de uma rua movimentada. Parecia divertir-se cada vez que um carro quase o atropelava. Parecia gostar do som de pneus arrastando no asfalto e parando quase em cima dele.
Bernardo ficou furioso. “Tu és um covarde”, disse-lhe Bernardo. “Estás brincando com o perigo porque tens medo de te ver como realmente és. És orgulhoso e presunçoso. Achaste sempre que eras o maioral, o mais belo, o galã imbatível e quando te viste sozinho, mostraste que não passas de um gato mimado e almofadinha. Te acovardaste diante do teu infortúnio e não tiveste, nem sequer, a dignidade de buscar a verdade. Tiveste medo de teres sido abandonado e preferiste o conforto enganador da dúvida, à possibilidade de te descobrires um rejeitado. Como todos os covardes, preferiste criar uma fantasia e ter pena de ti mesmo, ao invés de ires à luta. Mas eu não tenho pena de ti. Perdeste teu grande amor por medo e nem ao menos tens a coragem de reconhecer que és um fraco. Não vou mais arriscar meu pêlo por ti. Passei anos da minha vida contando-te histórias - algumas das quais até inverídicas - de valentia, de conquistas, de amor e de respeito pelos outros e pela vida, para ver se tu te descobrias nalguma delas e acordavas para o mundo. Mas tu preferiste a monotonia de viver sem objetivo, de só comer, beber e te olhares no espelho - achando que o que tu eras por fora te bastaria para ser feliz - em vez de arriscar-te e lutar pelo que realmente valia a pena. Enquanto isso a vida foi passando por ti e tu não aprendeste nada. Correr riscos, meu amigo, não é jogar-se na frente de um carro, é jogar-se nos braços da vida sem medo de se machucar.”
Papai levou um susto. Nunca vira o amigo naquele estado de indignação e raiva. Bernardo sempre fora gentil e jamais haviam tido uma discussão mais forte. Bernardo deixou-o na calçada, virou-se e foi embora.
As palavras de Bernardo não saiam da cabeça de papai. Teria sido ele um covarde por não ir atrás de sua amada. Lembrou-se do dia em que conhecera mamãe quando ela disse que ele não a conhecia porque vivia “lambendo o próprio pelo e só tinha olhos para si mesmo.” Será que eles tinham razão? Seria ele realmente assim?
Texto revisado por Cris
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