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Autotomia

Atualizado dia 13/08/2023 00:19:17 em Psicologia
por Raphael Mello


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Esses dias em uma sessão de análise, um analisando em meio à sua associação, trouxe uma pergunta muito interessante a si próprio: por que eu protejo essa imagem minha do passado até hoje?
A partir dessa pergunta, refleti sobre esse tema: por que será que protegemos imagens nossas, muitas vezes antigas, de um passado com tanto força?
É importante pensarmos como tudo que escolhemos, fazemos, somos, são partes ou rastros do nosso EU que vamos deixando no mundo e que em alguma medida revela que nós somos para nós e para o outro.
 
É interessante pensar como passamos uma vida tentando ser coerentes com nós mesmos, tentando não cair em contradições - tentando não nos contradizer. A gente fica preso a um passado e justificando nossas atitudes a partir dele. Ficamos apegados a um EU e nos tornamos escravos do outro.
 
Essa reflexão me trouxe à mente um poema que li há pouco tempo chamado “Autotomia”.

Para quem não sabe, Autotomia nada mais é do que amputação espontânea de um membro do corpo que certos animais fazem em si mesmos com o fim de evitar predação. É mecanismo presente em crustáceos e lagartos, entre outros.
 
Autotomia - [Wislawa Szymborska]
 
"Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca".
 
Por que me lembrei desse poema? Por que ele retrata exatamente nossa forma de ser do mundo. Por exemplo, pessoas que se dizem 8 ou 80. Por que não os outros 72 números no meio para colorir e descobrir.. Ou então, ou é amor ou é ódio - e por que não um neologismo de Lacan -"amódio" - os dois juntos se cercando e se misturando? Ou algo que ouço muito em clínica - por que solteiro sou livre, se eu namorar ou casar, minha liberdade acaba. Será que acaba mesmo?
 
Esse poema nos convida a olhar para nossas imagens e nossos rastros de outra forma. Será que uma coisa anula a outra ou será que essas coisas sempre vão nos cercar? E o que fazer com essa imagem do passado que não consigo me desvincular para viver novas experiências? Será que a autotomia pode ser um símbolo interessante para nossa vida? Uma parte nossa morre e a outra que vive continua?
 
E aí vem o convite desse texto, da análise, do poema e da vida: Diante de qualquer perigo podemos nos dividir entre a metade que será devorada pelo mundo e a outra metade que pode ser salva. Desespero por não poder mais ser coerente consigo mesmo e coragem para a criação de um novo Eu.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. E Renascer o tanto preciso, a partir do resto que se preservou.
Que parte em você pode morrer e qual parte pode continuar? Esses serão novos rastros do seu novo EU no mundo. Afinal o abismo não nos divide, ele nos cerca.
 
Texto Revisado

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Conteúdo desenvolvido por: Raphael Mello   
Olá, sou Raphael Mello, Sócio do Espaço Cântaros, Psicólogo & Psicanalista. Pós Graduado em Psicanálise Clínica e também em Saúde Mental, Psicopatologia e Atenção Psicossocial, além de Colunista de sites para autoconhecimento. Atuo em clínica desde 2015 e trabalho a partir do inconsciente e suas singularidades.
E-mail: [email protected] | Mais artigos.

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