VONTADE DIVINA E DESEJO HUMANO
Atualizado dia 9/2/2010 6:10:33 PM em Psicologiapor Oliveira Fidelis Filho
Sei que para os dicionários os termos Vontade e Desejo se equivalem, são sinônimos. Entretanto, neste texto, objetivando ser didático, vou separá-los deixando um no inferno e mandando o outro para o céu. Um habitará com os demônios, outro com os anjos. Um será contra nós, o outro a favor. Um nos meterá em encrencas, o outro nos livrará. Um nos fará caminhar na direção da Morte, o outro na direção da Vida. Um nos fará cativo de sentimentos menores, o outro dos sentimentos maiores. Um nos tornará habitação da guerra enquanto o outro da Paz. A um chamarei de Caim, ao outro de Abel.
No início do livro sagrado cristão, no livro de Gênesis, encontramos a história de Abel e Caim. O autor faz o seguinte relato: "Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste. Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira Caim, e descaiu-lhe o semblante. Então, lhe disse o Senhor: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo". Genesis 4. 3-7.
Para ajudar na identificação, transformei Caim em adesivo e fixei-o no Desejo, de igual forma, quanto a Abel, grudei-o na Vontade. Assim Caim será movido pelo Desejo e Abel pela Vontade. Isto porque, geralmente, é o Desejo ou a Vontade que comanda os sentimentos, pensamentos e atos e não o contrário.
A partir do texto Bíblico supracitado, parece que o Desejo é contra nós, enquanto que a Vontade nos é favorável. São duas forças conflitantes, que lutam pelo domínio do território da Alma. Quando o Desejo vence, a alma é expulsa e vaga perdida.
Até certo ponto, Abel tipifica Jesus, ou todos os que, vivendo a partir da Vontade Crística, geram e sofrem a oposição dos que agem movidos pelo Desejo.
Aparentemente, não há vantagem em sermos comandados pela Vontade divina, pois ficamos no caminho do Desejo homicida. Isso pode ser intimidante para quem vive destituído da Luz, esvaziado de Amor, distante dos territórios da Paz, estranho à Alegria; para os que, à semelhança de Caim, ainda não desenvolveram uma expansão de consciência, sob o comando da Vida.
Ao referir-me ao Desejo homicida, não estou dizendo que o Desejo fatalmente desemboque em um literal assassinato como aconteceu com Abel ou Jesus. É muito mais abrangente e, para perceber tal realidade, basta olhar o que aconteceu com Caim. No caso dele o seu Desejo era contra ele antes mesmo de ser contra Abel. O texto bíblico deixa isso evidente: "o seu desejo será contra ti...". A morte passa a operar na sua própria vida, concomitantemente ao desejo de assassinar seu irmão e, neste aspecto, todo assassinato é também um suicídio.
O homicídio protagonizado por Caim ao assassinar Abel fez estrago primeiramente no próprio Caim. Ele experimentou em si mesmo, antes de tudo, o veneno que desejou inocular no irmão. Antes de matar ele já "vivia o luto da morte" do Amor em si mesmo; "Irou-se, pois, sobremaneira Caim"..." Já se tornara réu de morte da Vida que nele existia, da dimensão Crística que nele operava, da morte da harmonia interna e externa, da paz pessoal e relacional.
Que a Vida Crística deixou de se expressar em Caim, tornando-o esvaziado de Alma, evidencia-se na narrativa bíblica "e descaiu-lhe o semblante". O rosto não só espelha a alma, mas também deixa evidente sua inexistência. Caim encontrava-se desalmado, as sombras resultantes do Desejo roubaram-lhe o brilho da face deixando-o "mal assombrado".
Destituído de Amor, Luz, Paz e Alegria, realidades que expressam a Vida ou a Vontade Crística, seu espaço existencial tornou-se habitação do ódio, da ira, do ciúme, da inveja, da amargura, do ressentimento, da vingança, dos sentimentos menores que alimentam o Desejo e que esvaziam o homem de sua humanidade.
Entretanto, ainda que o episódio de Caim e Abel possa apontar os sentimentos e comportamentos pouco fraternos entre irmãos e irmãs, quer de uma família em particular ou em relação à família planetária - arquétipo da realidade humana -, a narrativa bíblica deixa evidente que a responsabilidade de mudar o Desejo (homicida) é pessoal e intransferível: "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo".
Caim, após sentir-se rejeitado, passou a viver sob a força de um desejo aniquilador, tanto em relação a si mesmo como em relação ao próximo; no caso, a um membro de sua própria família. Não era, entretanto, só o fato de se sentir rejeitado por Deus ou o sentimento de inferioridade em relação a Abel e sim a falta de Amor próprio e pelo próximo o que gerava a raiva, a tristeza e o desejo homicida.
Pela revolta, sentimentos de rejeição, ódio, mágoa, inveja, desejo de vingança, ou outros sentimentos menores que possamos hospedar, existe uma causa básica: a falta de Amor. Entretanto, se somos capazes de gerar e nutrir sentimentos menores que engendram a morte significa que somos capazes de desenvolver e liberar sentimentos maiores que promovem a Vida.
Cabia, portanto, a Caim mudar e dominar seu desejo, limpar o coração, buscar na semente do Amor o germinar da Vida. O seu erro não estava na oferta que não tinha sangue, como argumentam alguns teólogos e sim em seu coração que não tinha amor.
O episódio de Abel e Caim acontece num contexto religioso, entretanto, quando a religião não desenvolve a espiritualidade acaba alimentando a revolta, a angústia, o distanciamento, o sentimento de inadequação, a culpa, o ódio, as cruzadas, as guerras santas, enfim as sombras comandam a historia.
Em cada um de nós habita um Abel e um Caim, a Vontade Crística e o Desejo anti-Cristo e possuímos o potencial para desenvolver tanto um como o outro. Quando o coração transborda de paz e a harmonia se faz presente, sabemos que estamos sob o domínio da Vontade divina.
O silêncio, a meditação, a oração de gratidão e entrega sob a Luz divina, juntamente com a ação transformadora do tempo, tem o poder de devolver ao coração o Amor e acalmar as paixões, pois o Desejo está para as paixões como a Vontade está para o Amor.
Ainda que nos reconheçamos como filhos da Luz trazendo em nós a Semente da Eternidade, a Essência Divina, somos também habitados ou visitados por sombras, pela paixão anti-Crística. Cabe a nós dominarmos os desejos homicidas - sutis ou gritantes - identificar o Caim em nós, confrontá-lo e diluí-lo na Luz, na Paz, na magia do Amor e no Espírito da Gratidão e da Alegria.
Teólogo Espiritualista, Psicanalista Integrativo, Administrador,Escritor e Conferencista, Compositor e Cantor. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Psicologia clicando aqui. |