Paralelamente ao desenvolvimento científico e tecnológico de nossa cultura industrializada, uma determinada visão de mundo, de valores, também se estabeleceu e deu suporte a ela. Esta visão de mundo valorizou certos aspectos em detrimento de outros.
Esta visão de mundo fundamentou-se no dualismo: matéria x espírito; corpo x mente; ciência x religião.
A ciência desenvolveu seu método de investigação e todo o fenômeno que não pode ser observado, quantificado, deduzido pelo método lógico-analítico de raciocínio (Descartes) foi considerado excluído dos fenômenos naturais e visto como sobrenatural, relacionado com o domínio da fé. Está fora do âmbito do cognoscível. Descartes, entretanto, não negava Deus, nem a existência da alma. Deus era visto como um criador externo, monárquico, governante a partir do alto. Inatingível, incognoscível. Bem de acordo com a visão dominante do catolicismo.
O domínio da ciência se opõe ao domínio da religião. Não se pensava, então, que os fenômenos físicos, em si, pudessem ser divinos: “Não há propósito, vida, ou espiritualidade na matéria”.
Descartes, considerado o fundador da filosofia moderna, buscou um método que lhe permitisse obter a certeza absoluta, uma ciência baseada, como a matemática, em princípios fundamentais que dispensassem demonstrações. A chave para a compreensão do universo, segundo ele, estava em sua estrutura matemática. O método cartesiano é analítico: consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em sua ordem lógica.
Este método levou à fragmentação característica do nosso processo de conhecimento, investigação e estudo. Levou à fragmentação das disciplinas acadêmicas, que cada vez mais se especializaram em determinados objetos de estudo. Levou ao reducionismo na ciência: todos os fenômenos complexos da realidade podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes componentes. O mundo passou a ser visto como uma máquina, desmembrável em suas partes: “Não reconheço qualquer diferença entre as máquinas feitas pelos artífices e os vários corpos que só a natureza é capaz de criar”.
A natureza passou a ser vista como um sistema mecânico enquanto a ciência foi adquirindo, cada vez mais, um caráter manipulador a serviço do desenvolvimento de uma nova ordem, preparando o terreno para a dominância da lógica do capital.
Desde os tempos antigos, as metas da ciência sempre haviam sido a sabedoria, a compreensão da ordem natural e a busca de uma vida em harmonia com essa ordem. A partir do século XVII, com a contribuição decisiva de Francis Bacon – o primeiro a formular uma teoria clara do empirismo na ciência – o objetivo desta se transformou radicalmente. Bacon ainda hoje é citado como fonte inspiradora de estudiosos – como, por exemplo, no convite de formatura de estudantes de medicina da Escola Paulista de ‘98 – provavelmente porque se desconhece o envolvimento comprometedor que este homem teve com os processos de caça às bruxas enquanto serviu como procurador-geral do rei Jaime I e porque não se lê diretamente as suas obras. Nelas encontramos uma linguagem bastante violenta e francamente vil. Segundo Bacon, a natureza precisa ser “acossada em seus caminhos”, “forçada a servir-nos”, e transformada em nossa “escrava”. Ela deveria ser “posta em coerção” e a meta do cientista deveria ser “torturar a natureza para extrair dela os seus segredos”. Foi assentada sobre este espírito que se desenvolveu a nossa cultura ocidental levando às trágicas degenerações ambientais em que vive o homem moderno.
Quanto ao método de investigação científica, criou-se verdadeira obsessão pela medição e quantificação. As propriedades dos corpos consideradas essenciais eram as formas, quantidades e movimentos mensuráveis. Outras propriedades como o som, cor, cheiro, sabor foram consideradas como projeções mentais subjetivas e excluídas do domínio da ciência.
O ônus desta postura foi bem ressaltado pelo psiquiatra R.D.Laing: “Perderam-se a visão, o som, o gosto, o tato e o olfato e com eles foram-se também a sensibilidade estética e ética, os valores, a qualidade, a forma; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a consciência, o espírito. A experiência, como tal, foi expulsa do domínio do discurso científico”.
Este modo de ver o mundo disseminou-se por todas as demais áreas do conhecimento e só aqueles fatos plausíveis de se enquadrarem nesta ótica de estudo é que se tornaram merecedores da atenção dos cientistas e estudiosos.
Na dualidade mente-corpo, o homem também foi reduzido a uma máquina. A doença vista como o mau funcionamento dos mecanismos biológicos, e estes, por sua vez, reduzidos às suas menores partes. Veja o desenvolvimento da especialização na medicina, tanto a nível de profissionalização, quanto ao campo dos estudos e pesquisas que se desenvolveram sob a ótica da biologia celular e molecular. Pouco ainda se sabe sobre as funções integrativas que se processam no organismo humano. Por exemplo, a medicina possui alguns conhecimentos sobre os circuitos nervosos, mas não consegue explicar como os neurônios operam conjuntamente para formar a ação integrativa do sistema nervoso. Outro exemplo está na área da embriogênese, considerada ainda um mistério. Não se explica como é que as células vão se dividindo e se especializando em diferentes funções, formando os diferentes tecidos e órgãos do corpo.
Os conceitos de saúde e de cura são pouco discutidos, quando não totalmente negligenciados nas escolas. Esta questão ainda se torna mais complicada ao se levar em conta a enorme influência que a indústria farmacêutica exerce sobre o sistema médico.
Antes de Descartes, a maioria dos terapeutas tratava dos seus pacientes no contexto do seu ambiente social e espiritual. Nos últimos três séculos, ao se concentrarem na máquina corporal, os médicos negligenciaram os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença.