Em julho de 1998, conheci Petra durante um curso que dei, na Itália, sobre como lidar positivamente com a idéia da morte. Durante a semana em que durou o curso, Petra e eu criamos um vínculo de afeto e confiança. Ela reelaborou a morte recente de seu pai, assim como refletiu sobre a sua própria morte, uma vez que sabia que não estava bem de saúde.
Petra era delicada e terna e, ao mesmo tempo, firme e decidida. Sua espiritualidade era presente no seu modo de ser – disponível para amar e ser amada. No final do curso, ela expressou a vontade de que eu estivesse ao seu lado, caso seu estado de saúde piorasse. Voltei para o Brasil. Cinco meses mais tarde sua mãe me ligou. Petra estava hospitalizada e queria me ver.
A causa da sua hospitalização era uma infecção ainda desconhecida. Seu estado de saúde era muito grave, com febre alta e insuficiência pulmonar.
Como já estava com uma viagem marcada para a Itália, fui visitá-la assim que cheguei. Ela estava na UTI com máscara de oxigênio, submetida à respiração forçada. Devido a experiências precedentes, sabia que esta era uma situação extrema, uma vez que se a máscara fosse removida para aliviar o desconforto do paciente, ele morreria de asfixia em poucos minutos.
O médico de plantão foi gentil e colaborador. Permitiu que eu ficasse na UTI ao lado de Petra o tempo que quisesse. Estavam presentes a mãe e o namorado de Petra. Nós nos revezávamos para ficar ao seu lado. Todos estavam calmos.
A falta de ar é um estado que desperta a sensação de emergência contínua. Petra estava assustada e seus olhos expressavam dúvida e medo. O médico já havia me dito que ela seria logo entubada e pediu minha ajuda para falar com a família.
Então, me reuni com a família fora do quarto e nos preparamos para esse momento. De mãos dadas, formamos um círculo e dirigi uma curta meditação. Além de lembrar do quanto é importante aceitar as situações sem julgá-las, ressaltei a idéia de que não havia nada de errado no fato de morrer. Sua mãe disse que era com um grande alívio que ouvia essa frase. Confessou que se sentia culpada. Como ela, muitos familiares pensam que não fizeram tudo que poderiam ter feito pelo bem estar de seus parentes.
Esse sentimento de culpa é resultante de uma super avaliação de nós mesmos: pensamos que poderíamos ter feito algo que, na realidade, não nos cabia fazer. Um dos motivos por que isso acontece é por que confundimos os nossos sentimentos com os sentimentos dos outros. Muitas vezes não sabemos o que acontece dentro de nós, mas temos “certeza” do que acontece com os outros. Temos o hábito de concluir, sem consultá-los, o que eles pensam e porque agem de determinada maneira.
Quando a pessoa com quem temos o hábito de pensar “por ela” está morrendo, ilusoriamente pensamos ser capazes de fazer algo no lugar dela. Queremos fazer de tudo para aliviá-la da dor e de seus conflitos emocionais. Mas uma vez que não atingimos nosso objetivo de acalmá-la, sentimos culpa, como se não tivéssemos feito o suficiente. Precisamos compreender e aceitar que nada podemos fazer no lugar de outra pessoa, a não ser inspirá-la a fazer algo por ela mesma. Por isso, é saudável reconhecer que a morte é algo natural e que não há nada de errado em morrer. Assim, poderemos abandonar a culpa, baseada em pensamentos de que sempre poderíamos ter feito mais.
O sentimento de culpa também está presente na pessoa que está morrendo. Muitas vezes, ela se sente “responsável” pela sua doença e um peso para a sua família. Também se sente culpada por “abandonar” aqueles que ficam: pais, filhos ou marido. Essa sensação surge quando pensamos ser capazes de estar sempre presentes quando o outro precisar de nós. Assim como uma mãe gostaria de poder consolar seu filho sempre que ele necessitasse de consolo.
Durante a vida, temos inúmeras oportunidades para aceitar as separações como resultado natural de um encontro - especialmente quando alguém se separa de nós sem esclarecer a razão de sua atitude. Aí temos a oportunidade de superar a idéia, pretensiosa, de que teríamos o direito de compreender a razão de tudo e, portanto, de controlar a situação. Se aprendermos a aceitar de que nada é permanente, poderemos aprender a nos separar. Por isso, também é saudável reconhecer que não há nada de errado em se separar.
Repetir inúmeras vezes as frases não há nada de errado em morrer e não há nada de errado em se separar pode nos ajudar a superar a culpa e a aceitar a realidade. No livro A Arte de Morrer, Marie de Hennezel (Ed. Vozes) escreve: “O ‘tempo de morrer’ tem um valor. Acompanhar esse tempo exige de todos uma aceitação diante do inelutável, do inevitável, que é a morte. Isso implica o reconhecimento de nossos limites humanos. Seja qual for o amor que sintamos por alguém, não podemos impedi-lo de morrer, se esse é o seu destino. Também não podemos evitar um certo sofrimento afetivo e espiritual que faz parte do processo de morrer de cada um. Podemos somente impedir que essa parte de sofrimento seja vivida na solidão e no abandono; podemos envolvê-la de humanidade”.
A mãe de Petra havia se tranqüilizado com relação ao seu sentimento de culpa. Agora tinha de se preparar para estar calma enquanto a filha seria entubada na UTI.
O médico também me havia pedido para falar com Petra que ela seria entubada. Precisava despertar coragem para dizer a ela. Depois de cantar alguns mantras em voz alta ao seu lado eu disse que ela receberia alguns sedativos. Ela logo entendeu a situação e me perguntou: “Eles vão precisar me entubar?”
“Sim” respondi. Ela me olhou nos olhos e disse: “Tenho medo”. Expliquei de maneira direta, mas suave, a realidade: “Com esta máscara apertada no seu rosto, você vai continuar a sentir dor e será difícil estar em paz. Mas se você dormir poderá entrar em contato com as bênçãos seus mestres espirituais, Osho e Gangchen Rimpoche. Fixe o seu olhar nos meus olhos. Estou com você”.
Petra apertou a minha mão e me olhou fixamente. Comecei a cantar em voz alta o mantra de Lama Gangchen Rimpoche. Enquanto isso, o médico e as enfermeiras preparavam a os aparelhos para a entubação. Em poucos segundos, Petra estava inconsciente.
Esta foi a última vez que vi Petra. Ela ficou em coma por um mês, e depois faleceu.
Esse tempo em que Petra esteve em coma serviu com um refúgio no inconsciente, uma preparação para a morte. Marie de Hennezel, no seu livro A Arte de Morrer explica: “A vida continua presente, mas a pessoa parece que se retirou para os subterrâneos do seu ser. O coma parece ser uma espécie de redução de atividade, uma espera. Talvez uma forma de deixar aos acompanhantes o tempo de prepararem-se, de aceitarem a partida, talvez a expectativa de uma palavra de adeus, de uma autorização para morrer, ou de um derradeiro abraço que permita soltar o próprio corpo e morrer”.
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Sobre o autor
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia. Email: [email protected] Visite o Site do Autor