Estar ao lado daqueles que nos ajudam a ver com mais clareza é uma bênção!
Semana passada, meu filho Lama Michel visitou o Brasil por uma semana. A partir de um fato muito simples, pude ter um grande ensinamento: ao apertar os botões na câmera filmadora, procurando ajustar a fita na última imagem gravada, ele me disse: “Mãe, é só apertar este botão na tela do vídeo, ele ajusta a fita sozinha”. Jamais havia me passado a idéia, que seria permitido tocar a tela, muito menos que haveria uma forma tão simples e fácil de ajustar a fita na última imagem gravada. Ri, e disse para ele: “Acho que é isso que você faz em nossa vida: aponta um caminho mais próximo e mais fácil, que eu nem imaginava poder percorrer”!
Às vezes, certas pessoas, ou até mesmo frases curtas, nos ajudam com dicas simples que efetivamente ampliam nossa visão de mundo. Nestes momentos, percebemos como vivemos segundo nossa percepção limitada de mundo: sem nos dar conta, somos o resultado dos limites que nos impomos!
Assim como uma conversa esclarecedora é capaz de desanuviar mal-entendidos, conquistar uma nova visão de uma situação limitadora traz alívio e regenera a capacidade de seguir adiante. Como é possível viver uma mesma situação de modos tão diferentes!
Cada um vive o mundo de acordo com sua visão kármica. Ou seja, uma única realidade consiste numa experiência infindável de realidades diferentes.
Segundo o budismo tibetano, todos os seres com karma semelhante possuem uma mesma “visão kármica”, isto é, partilham do mesmo conjunto de percepções do mundo à sua volta. Por exemplo, nós, seres humanos, somos muito parecidos uns com os outros por possuirmos a mesma visão kármica; no entanto, devido às forças do karma individual, cada um vivencia de modo particular a sua própria visão kármica. Dentro de cada reino, a condição kármica de cada ser é única.
Tudo o que vemos é resultado daquilo que nossa visão kármica nos permite ver. Nada mais do que isso. A visão kármica é o resultado de nossas projeções mentais: desejos que não são reprimidos com êxito e têm de ser projetados como um “inimigo interno” da personalidade. Neste sentido, a visão kármica é um reflexo de um conflito interior.
A existência humana não é a única visão kármica possível. Segundo a psicologia budista, existem seis grandes visões kármicas impuras, descritas como três reinos superiores e três reinos inferiores. Os três reinos superiores incluem os deuses, semideuses e os humanos. Os três reinos inferiores referem-se aos animais, os fantasmas famintos e os seres do inferno.
Cada reino é marcado pela contaminação de uma forte emoção negativa que produz uma percepção particular da realidade. O reino dos deuses é marcado pela preguiça e pelo orgulho; o reino dos semi-deuses pela inveja e pelos ciúmes; o reino dos humanos pelo desejo de posses; enquanto que o reino dos animais é marcado pelo medo e pela ignorância; o reino dos fantasmas famintos pela avidez e finalmente, o reino do infernos pela raiva e impaciência.
Apesar de cada reino possuir uma característica predominante, nós vivemos diariamente os demais reinos quando somos tomados por seus complexos estados psicológicos.
Entramos num reino quando estamos presos ao seu sofrimento. Para saber sair de uma situação, é preciso saber como se entrou nela!
Chagdud Rimpoche nos contou uma história que exemplifica bem este ensinamento. Certa vez, um camponês do interior do Tibete, numa peregrinação ao Potala, passou a cabeça entre as estreitas grades de uma das janelas do palácio para contemplar a vista. Olhou para a direita e para a esquerda e, quando quis tirar sua cabeça da janela, percebeu que ela estava presa entre as grades. Vendo que não conseguia mais sair, chamou seus amigos e lhes disse: “Estou preso aqui e sei que não vou conseguir sair. Mas morrer no Potala é uma grande honra. Por favor, avisem meus familiares que morri feliz”. Os amigos, então, começaram a chorar. Um Lama que estava por perto se aproximou para ver o que estava acontecendo e perguntou ao camponês: “Como você colocou a sua cabeça aí”? O camponês, então, girou a cabeça para mostrar e, assim, tirou-a naturalmente das grades... Moral da história: você sai de um problema da mesma forma como entrou.
Nas próximas semanas vamos refletir reino por reino. Vamos analisar as maneiras pelas quais nossos pensamentos e sentimentos se cristalizam sob a forma de preocupações emocionais e como, por meio da compaixão, poderemos encontrar uma atitude de solução frente ao conflito do sofrimento.
Assim como escreve Martin Lowenthal em seu livro “O Coração compassivo” (Ed. Pensamento): “A compaixão não é apenas o resultado da intuição e da compreensão: é ela própria um caminho para a liberdade. A compaixão é a resposta natural e espontânea de um coração aberto. Além disso, somos mais férteis e intuitivos quando ajudamos os outros do que quando só nos preocupamos conosco. A compaixão - zelo pelo bem-estar e felicidade dos semelhantes - pode nos tirar de nossos mundos isolados de sofrimento e nos revelar as causas desse sofrimento. A sabedoria da compaixão - a compreensão da nossa natureza e da confusão básica do sofrimento - brota depois que nos abrimos inteiramente para o desconhecido e aprimoramos o inabalável conhecimento da nossa liberdade”.
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Sobre o autor
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia. Email: [email protected] Visite o Site do Autor