Quando o dia flui, parece que nos esquecemos dele com mais facilidade. Seja porque funcionamos no automático ou porque nada fora da rotina ocorreu. Mas quando nos deixamos tocar pela diferença de cada instante, pelas surpresas que a vida nos traz, gravamos em nossa mente uma sutil e agradável sensação de eternidade: intuitivamente sabemos que dificilmente vamos nos esquecer daquele momento.
O curioso é que muitos destes momentos foram decorrentes de ações corriqueiras, mas ficaram fotografados em nossa mente simplesmente por que estávamos abertos e bem acordados!
Nestes dias de férias, notei como relaxar nos ajuda a acessar nosso banco de boas memórias. Quando estamos livres das pressões, dos deveres e obrigações, nossa mente encontra espaço e oportunidade para nos presentear com lembranças singelas, de profundo e fugaz bem-estar.
Outro dia, por exemplo, enquanto fazia uma limonada, me lembrei do rosto que meu filho fazia quando era bebê e chupava limão. Esta imagem veio e se foi, como o aroma perfumado de uma flor que permanece no ar por apenas alguns segundos.
Algo semelhante também ocorreu quando resolvi arrumar o depósito dos “trastes velhos”: caixas com inúmeras fotografias ainda por selecionar, sem falar das revistas velhas e todos os cacarecos que estão impregnados de apego por boas lembranças.
Confesso que até hoje guardo o meu urso de quando era criança! Ainda estou convencida que ele é uma bateria de boas memórias: minha filha brincou com ele e porque não deixá-lo para minha neta?
Quando reconheço que ele é um testemunho da minha inocência, resisto em me desapegar dele. Sinto que ainda existem lembranças e que por meio dele consigo me resgatar. Afinal, quando nos recordamos de como agíamos quando éramos crianças, recuperamos o contato com o lado natural e espontâneo de nossa personalidade.
Nossa alma se sente nutrida quando é reconhecida por sua natureza. Desta forma, tornamos-nos receptivos a nós mesmos e a nossa auto-estima agradece pela atenção que lhe foi dada. Agora, sem dúvida teremos mais energia afetiva para compartilhar com os outros.
Ao passar pelo crivo “do que devo ou não me desfazer,” estes objetos nos revelam a quais assuntos ainda estamos presos e precisamos dar mais atenção. Alguns objetos até parecem estar vivos quando os pegamos em nossas mãos!
Ao dedicar nosso tempo para mexer em armários que há muito tempo não abríamos, nossa mente torna-se contemplativa: arrumamos o que está fora de nós para nos arrumarmos por dentro.
Desta forma, ao reciclar nossas memórias, nos atualizamos interiormente. Afinal, quando nos damos conta que o que sentimos agora é diferente do que sentimos anteriormente, sabemos o quanto já andamos em relação àquela emoção.
Às vezes, resistimos em arrumar o quarto de um filho que já se foi ou a casa de nossos parentes depois que eles faleceram. Mas, quando nos propomos a encarar de frente este desafio é sinal que estamos quase prontos para dar mais um passo em nossa vida.
Certa vez, quando estava viajando com Lama Gangchen, disse a ele que queria tirar um dia para não fazer nada. Então, ele me disse: “Durante o dia fazemos muitas coisas, vivemos o momento presente sem nos darmos conta que em certas ações criamos, naquele instante, o nosso futuro”.
Este ensinamento me inspira a encontrar futuro quando me desfaço dos meus objetos de apego do passado...
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Sobre o autor
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia. Email: [email protected] Visite o Site do Autor