O Doador de Memórias (The Giver, 2014) é um filme de reflexão, para reflexão. Mas não muita.
Os adoradores de filmes como "Waking Life", "Ponto de Mutação" e a trilogia "Antes do(a) (Amanhecer, Pôr-do-Sol, Meia noite)" sentirão falta de maior substância, mas também não é um filme raso: ele apenas não se põe de pé com as próprias pernas. Me lembra "Tron: o legado" e "Oblivion", em que ele começa instigante, parece que vai explodir sua cabeça como em "Matrix", mas aí ele se perde num final pouco inspirado. Mas não se enganem: não é um filme ruim, ao contrário. Me peguei pensando nele nos dias seguintes, especialmente por estar convivendo com diferentes culturas.
A história do filme gira em torno de uma comunidade altamente tecnológica vivendo num mundo pós-apocalíptico. Essa comunidade me lembrou demais o visual e a organização de Nosso Lar com o controle descrito no livro "1984". Há horários pra ir pra casa, horário pra dormir, tomar remédios "pra saúde" toda manhã, todos os seus movimentos são vigiados por drones e câmeras dentro de casa, e a qualquer momento você pode receber uma visita cortês da "governadora" (Meryl Streep, numa interpretação contida). Tudo isso de forma gentil, acolhedora, para o seu próprio bem e pro bem da sociedade. Esse é o ponto mais interessante do filme: as diferenças, a individualidade e as emoções foram banidas em nome da comunidade. O resultado é um lugar pacífico, harmonioso, lindo e... estéril. Essa última característica é representada visualmente com a fotografia em preto-e-branco. Nessa comunidade, cada profissão é escolhida de acordo com as aptidões naturais de cada pessoa. O personagem principal é meio sonhador, então, ficou com a responsabilidade de ser o "Recebedor de memórias" da comunidade. Essas memórias são transmitidas por livros (que só o recebedor tem acesso) e por meio de uma espécie de transmissão telepática, através do Recebedor mais velho, que vai ficar encarregado de passar tudo o que sabe ao mais novo.
A comunidade é mantida na mais completa ignorância de tudo o que se passou. Vivem no agora, e entregam o futuro ao conselho de anciões. Não sabem o que existe para além das fronteiras da cidade. Não questionam. Não usam palavras que possam levar à dúvida. Não sentem amor ou ódio, pois essas emoções podem ser destrutivas. E, enquanto o novo Recebedor vai aprendendo sobre o passado, mais ele se torna "humano" novamente, e isso é representado pelas cores que ele vai percebendo ao seu redor (recurso usado magnificamente no filme "Pleasantville: A Vida em Preto e Branco").
As intervenções do novo Recebedor começam a afetar o equilíbrio da comunidade. E assim se desenrola a história.
As atuações e o envolvimento com o filme ficam um pouco prejudicados por conta da falta de emoção por parte dos personagens, mas nas mãos de um bom diretor/montador isso não seria problema. Jeff Bridges (o Recebedor de memórias mais velho) poderia ser um hippie porra louca por conta de tudo o que leu e viu, mas é só mais um cidadão sem graça. O legal do filme foram os questionamentos que ele me trouxe, os paralelos com o que li e tenho vivido. Primeiro, a semelhança com Nosso Lar: como as pessoas lá são incentivadas a agir num certo ritmo, entrar numa coisa meio colméia, sem altos e baixos, me fez pensar se esse lugar de apoio no meio do umbral não seria assim justamente pra conter qualquer tipo de emoção? Saudade, revolta, dor, paixão... em teoria o espírito, quando "fora" da carne, fica mais susceptível a todo tipo de emoção que pode arrastá-lo dos mais altos céus até as regiões mais profundas. Nosso Lar não seria mais do que uma prisão correcional temporária, onde você não pode ser você mesmo, pra sua própria proteção.
Outra questão é o problema da normatização. Quando vivemos em sociedades pluriculturais há sempre um choque de civilizações. Aprendemos o que é feio (ou mal-educado) de se fazer, seja falar um pouco mais alto na praia, ou até mesmo assobiar. Em pouco tempo, estamos adaptados (normatizados) e passamos a estranhar/criticar nossa própria cultura. Até que descobrimos uma nova cultura, onde o "fino" da educação que você acabou de aprender pode ser, na verdade, pouco cortês. Então, o quanto devemos abdicar de nós mesmos pra vivermos em sociedade? O que é melhor: uma sociedade onde tudo é permitido e a alegria se mistura com a selvageria, ou uma sociedade controlada, onde você se tolhe (ou é tolhido) em nome de um bem maior?
Essas são questões que não estão diretamente ligadas ao filme, mas que ainda assim vale a pena assisti-lo pela contextualização que ele proporciona.
Acid é uma pessoa legal e escreve o Blog www.saindodamatrix.com.br "Não sou tão careta quanto pareço. Nem tão culto. Não acredite em nada do que eu escrever. Acredite em você mesmo e no seu coração." Email: Visite o Site do Autor