Já passamos do ano 2000, onde o mundo ficou mais integrado graças a Internet, aviões aos milhares, barreiras das línguas caindo, mas ainda nos debatemos com problemas como fome, racismo, religião, violência, intolerância, injustiça... o que nos faz pensar se isso não é apenas uma fase, mas uma CARACTERÍSTICA da raça humana. Há alguma esperança de superarmos isso globalmente com mais educação, mais conhecimento, mais amor?
É fácil olharmos as notícias do Brasil e pensarmos: não, não há esperança. Dentre 10 candidatos, elegemos pro segundo turno os dois únicos com problemas na justiça e acabamos reelegendo uma presidente envolvida num escândalo de bilhões de corrupção de um partido que é praticamente sinônimo de quadrilha nas redes sociais. Pastores que extorquem desempregados em nome de Deus na TV declaram luta contra homossexuais por motivos de que "minhas crenças dizem que vocês não têm direitos a ter direitos".
Pessoas se odeiam nas ruas e na internet. Seja por sua orientação sexual, religiosa ou política. Ou mesmo time de futebol. Tudo isso parece mais uma desculpa pra odiar.
Já passamos dos anos 2000. Ainda não temos carros voadores (pelo menos não pelas ruas), nem bases na Lua, nem robôs faxineiros, nem a cura de todas as doenças, mas ao menos estamos perseguindo essas metas, e cremos que dentro de 25 anos poderemos estar criando realidades virtuais indistinguíveis da nossa "realidade". E quanto a nós? De quantas realidades precisaremos pra aprendermos a amar nosso semelhante? Ou quantas realidades serão necessárias pra fugir de nós mesmos?
Se nos anos 80 me dissessem que em 2015 estariam matando outras pessoas apenas pela cor de sua pele, por sua religião ou orientação sexual eu não acreditaria. Ou acreditaria somente se dissessem que em algum ponto houve uma guerra nuclear e voltamos à barbárie. E aqui estamos, cercado do conforto de nossa tecnologia, vendo essas atrocidades.
Os sábios dizem que, enquanto não aprendermos a nos amar não saberemos amar ao próximo. É a base do ensinamento do "Ame ao próximo como a ti mesmo". Imagino que a maioria se olhe e, baseado no instinto de sobrevivência, diga "eu me amo", "eu me cuido", "quero o que é bom pra mim". Então, baseado na grande falta de amor que vemos e sentimos no dia-a-dia, imagino que o instinto de sobrevivência (e de "querer bem") não seja assim um bom referencial pro amor. Isso é ainda mais verdade quando olhamos a justificativa dos religiosos de que "nós amamos o pecador, mas não o pecado", ou seja, eles perseguem a homossexualidade, mas acolhem o homossexual, na esperança de que ele "abra os olhos" e perceba que está enveredando pelo "caminho errado". Não é muito diferente do pensamento do "bom selvagem" (vide o Sexta-feira, de Robson Crusoé, ou o Tonto, do Lone Ranger), ou o "negro com alma de branco".
O amor não é uma prisão, um molde ao qual devamos ser conformados. Não é um cadeado numa ponte em Paris, nem um círculo traçado onde "se você cruzar essa linha, não te amo mais". A própria Bíblia traz a parábola do Filho Pródigo, que o pai deixou seguir o próprio caminho, mas amou e acolheu o mesmo quando voltou, sem julgamentos. Muita gente se apega à frase "porque esse teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado" pra interpretar que o caminho do irmão era de morte espiritual e perdição, mas está escrito que ele partiu para uma terra distante, obviamente sua família não tinha notícias (poderia muito bem estar morto ou perdido). Há sim um arrependimento moral por parte do filho: "Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho". Mas não há nenhum julgamento moral na fala do pai, embora fique aberto pra interpretações. Mas pego aqui uma outra parábola de Jesus pra dissipar qualquer dúvida: "E qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra?" Nem o pai da parábola expulsou o filho de casa, como não deixou de amá-lo por suas escolhas "erradas".
Quantas famílias não foram destruídas porque os pais, "zelosos da Bíblia", aguardam um "arrependimento" dos filhos para amá-los porque se apegam à letra morta e deixam de compreender o cristianismo vivo em toda a sua extensão? Há inclusive uma proposta no Congresso pra uma "Bolsa Ex-Gay", como se fosse um ex-presidiário que necessite de uma ajuda do Estado pra se reintegrar na sociedade. A diferença é que o "gay" não fez nada de errado pra sociedade, e nunca deveria ser visto como alguém que precise deixar de ser o que é pra ser reintegrado na sociedade.
Escrevo isso imediatamente depois de assistir ao discurso do (Já vi Obama com esperança, já me decepcionei, hoje o vejo como mais uma peça no tabuleiro do poder dos EUA e do mundo. Ele só fez o que fez porque foi permitido que fizesse. Mas não posso ignorar o significado e o simbolismo desses discursos, nesses momentos de profunda importância pra sociedade.) Obama(*) em Charleston, no funeral do pastor Clementa Pinckney. Passei o discurso quase todo em lágrimas. Não só porque é um grande orador lendo um texto que provavelmente vai entrar pra história dos textos presidenciais dos EUA (um texto brilhantemente escrito em torno da música "Amazing Grace") mas porque de repente surgiu uma fagulha de esperança: na mesma semana a bandeira confederada (que representava o lado dos EUA que lutava pela manutenção da escravidão) foi abolida, um presidente negro discursa numa Igreja de raízes negras, pra uma platéia mista, logo após um crime terrorista racial, e consegue deixar uma mensagem de paz, acolhimento, reflexão e esperança. Um político conseguiu, utilizando o melhor que se pode tirar da religião, inverter a energia de ódio e revolta em harmonia e compreensão. E na mesma semana esse mesmo político saúda a aprovação do casamento gay e utiliza a mesma lógica do discurso em que pregou o fim do uso da bandeira confederada e do porte de armas: De que a história (ou Tradições) "não pode ser usada como uma espada para justificar a injustiça ou um escudo para impedir o progresso. Deve sim ser um manual pra nos alertar a não repetir os erros do passado, para quebrar ciclos, para fazer um caminho para um mundo melhor".
A letra da música "Amazing Grace", em torno da qual foi escrito o discurso, é um ótimo exemplo do "spiritual" negro, muito embora tenha sido escrita por um branco inglês, John Newton. Newton era simplesmente o cara mais escroto e blasfemo do navio negreiro onde trabalhava (que já não era nenhuma escola para moças), praticando bullying até com o capitão do navio e zoando da fé dos marinheiros em Deus, o que geralmente resultava em detenções e até mesmo escravidão. Mas certo dia o navio enfrentou uma violenta tempestade que ameaçou matar a todos. Um dos marinheiros, que estava em pé no lugar onde Newton estava minutos antes, foi jogado no mar. Desesperado, Newton deu uma sugestão para o capitão pra se salvarem (no que foi atendido). Ele então disse: "Se isso não resolver, então que Deus tenha piedade de nós". Resolveu. E Newton ficou meditando nessa frase por dias, se perguntando se ele - tão diretamente oposto a Deus - seria digno da misericórdia Divina.
A letra é um lamento de profunda resignação e fé. Obama pontua em seu discurso: "O caminho para a Graça (divina) envolve uma mente aberta. Mas, mais importante, um coração aberto".
Que os ventos de mudança que sopram de lá da Irlanda possam tocar os corações de todo o mundo, em especial dos brasileiros.
por Acid
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