Após um longo tempo de deprê de fim-de-ano, eis que volto com uma série de posts sobre uma exposição que visitei no Museu de Arte e História do Judaísmo, intitulada Magia: Anjos e demônios na tradição judaica. Neles veremos uma faceta pouco conhecida do judaísmo: suas superstições e como os antigos judeus se protegiam das influências malignas, invocando anjos e desenhando símbolos em quadros, amuletos, objetos de casa etc..
Anjos e Demônios
O judaísmo tradicional acredita que Deus governa sobre um mundo de numerosos seres invisíveis e poderosos, especialmente os anjos, demônios e os mortos.
Entre o período do Segundo Templo e o período talmúdico (600 aC - 500 dC) vários textos descreviam o mundo celestial como povoado por um número infinito de anjos, intermediários entre o homem e Deus. É no Sefer ha-Razim (Livro dos Mistérios), o livro de magia judaica mais antigo que sobreviveu (meados do primeiro milênio de nossa era) que esta visão do mundo adquire uma dimensão mágica, com uma hierarquia complexa anjos encarregados de cada fenômeno natural ou provocados pelo homem, bem como maneiras de os convocar.
O Talmude Babilônico (Talmud Bavli), compilado por volta do século VI, vê os demônios como seres intermediários entre homens e anjos: incontáveis, podem alterar a aparência, moverem-se para os quatro cantos da Terra instantaneamente e se tornarem invisíveis. Obedecendo a um rei, Ashmodai, eles vivem à margem da civilização, em desertos, poços, ruínas, fossas de latrinas, mas também entre os homens e, por vezes, dentro neles. Seu poder oculto reside na sua capacidade de prejudicar os humanos.
Terrível, o demônio Lilith*, mãe de todos os demônios, encarna a brutalidade de uma natureza hostil aos seres humanos. Sua imagem e nome são encontrados em grande quantidade de amuletos e objetos apotropaicos, muitas vezes acompanhados dos nomes e figuras de três anjos da medicina: Sanoi, Sansanoi e Semangelof (סנוי סנסנוי וסמנגלוף) - que mantêm o demônio afastado.
A história mais conhecida de Lilith pode ser encontrada no livro Alfabeto de Ben Sira**. Segundo esse livro, Lilith foi a primeira mulher que Deus criou, e a primeira feminista. O texto diz:
Depois que Deus criou Adão, que estava sozinho, Ele disse: 'Não é bom que o homem esteja só' (Gênesis 2:18). Ele então criou a mulher para Adão, a partir da terra, como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a Lilith. Adão e Lilith imediatamente começaram a brigar. Lilith disse: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti? Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual". Quando reclamou de sua condição a Deus, Adão retrucou: "Eu não vou me deitar abaixo de você, apenas por cima. Pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou feito pra ser superior". Lilith respondeu: "Nós somos iguais um ao outro, considerando que ambos fomos criados a partir da terra". Mas eles não deram ouvidos um ao outro. Quando Lilith percebeu isso, ela pronunciou o Nome do Inefável e voou para o ar. Adão permaneceu em oração diante do seu Criador: "Soberano do universo! A mulher que você me deu fugiu!". Deus então chamou três anjos para trazê-la de volta.
O Senhor disse a Adão: "Se ela quiser retornar, o que está feito está bom. Se não, ela deve permitir que todos os dias 100 filhos dela morram". Os anjos deixaram Deus e encontraram Lilith no meio do mar, nas águas onde os egípcios estavam destinados a se afogar. Eles repetiram as palavras de Deus, mas ela não quis retornar. Os anjos disseram: "Então nós devemos afogar-te no mar".
"Deixe-me!", disse Lilith. "Eu fui criada apenas para causar doenças em crianças. Se a criança é um homem, tenho poder sobre ela durante oito dias após seu nascimento; se for uma menina, por vinte dias". Os anjos insistiram pra ela retornar, mas Lilith jurou a eles em nome de Deus: "Onde quer que eu veja vocês ou o nome de vocês em um amuleto, eu não terei poder sobre essa criança". Ela também concordou com a morte das suas 100 crianças por dia.
Assim, era comum ter no berço e nas crianças amuletos com os nomes e imagens tanto da Lilith como dos três anjos. A maioria desses amuletos (Shmirot e Qame'ot) serviam pra proteger a mãe e o recém-nascido. Encontrados em forma de Jóias, tecidos bordados, amuletos de papel, escritos ou impressos foram uma tradição durante toda a diáspora. A profusão destes amuletos revelava a profunda sensação de insegurança que reinava na área da fertilidade e natalidade.
Vários ritos de proteção foram realizados e transmitidos por mulheres. As paredes da sala da mulher grávida, sua cama e mesmo seu corpo eram portadores de invocações repetidas, como a fórmula "Adão - Eva - Fora Lilith - Sanoi Sansanoi Semangelof". O berço e o espaço circundante à criança também deveriam ser fortemente protegidos. Mulheres da comunidade judaica local, incluindo a vizinha da família eram mobilizadas para assegurar o cumprimento dos ritos de proteção. Considerado como o momento de maior perigo, o dia e a noite antes da circuncisão eram os de maior mobilização para derrotar o assalto final de Lilith. Orações e rituais apotropaicos se combinavam para aumentar a eficiência.
Com Lilith também surgiram as lendas vampíricas: Ela teria 100 filhos por dia, Súcubus quando mulheres e Íncubus quando homens, ou simplesmente Lilims. Eles se alimentavam da energia desprendida no ato sexual e de sangue humano. Também podiam manipular os sonhos humanos, e seriam os geradores das poluções noturnas. Uma vez possuído por uma Súcubus, dificilmente um homem saía com vida.
Há certas particularidades interessantes nos ataques de Lilith, como um aperto esmagador sobre o peito do homem (uma vingança por ter sido obrigada a ficar por baixo de Adão) e sua habilidade de cortar o pênis com sua vagina, segundo os relatos católicos medievais. Ao mesmo tempo que ela representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina.
Essa história de Lilith ter sido a primeira mulher só apareceu na nossa era, mas o mais interessante é que na Bíblia/Torah, no primeiro capítulo do Livro de Gênesis/Bereshit, versículo 27, está escrito: "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher". Porém, no segundo capítulo versículo 18: "O Senhor Deus disse: Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada". e é apenas no versículo 22 do segundo capítulo que Eva é criada: "E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem". É possível que no primeiro capítulo a mulher criada seja Lilith e, levando em consideração o versículo 23: "Disse então o homem: Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada." podemos verificar na expressão de Adão "...esta sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!..." a afirmativa de existência de outra criatura que não era qualificada como mulher e que não se podia se submeter a ele pois era independente, estava no mesmo nível de criação, à mesma altura de Adão. Em algumas traduções, como na Bíblia ortodoxa judia, o texto "esta sim..." aparece como "AGORA esta é osso..." o que não parece ser um erro de tradução, mas uma evidência de que existiu uma anterior.
* Lilu ou Lilith foi uma deusa adorada na Babilônia e Mesopotâmia, associada a ventos e tempestades, que se imaginavam ser portadores de enfermidades e morte. A etimologia da palavra Lil é próxima da palavra de origem semita Layl (noite). Nas lendas judaicas, é dito que Lilith seja esposa de Samael, príncipe dos anjos caídos, ou de Ashmodai, Rei dos demônios.
** Alphabetum Siracidis em latim, Othijoth ben Sira em hebreu. É um livro falsamente atribuído a Jésus Ben Sira, datado entre 700 e 1000 de nossa era. Nele há uma curta passagem onde Ben Sira conta a história de Lilith à Nabucodonossor.
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