Desde o alvorecer da humanidade, a religião tem desempenhado um papel central na forma como os seres humanos interpretam o mundo, enfrentam incertezas e estabelecem laços sociais. Mas por que, em um mundo moldado por avanços científicos e pensamento racional, a religião continua sendo uma força tão prevalente?
Seria a religião apenas uma criação cultural, ou haveria algo mais profundo, talvez biológico como um vírus da linguagem*, que explique sua persistência?
Praticamente todas as culturas conhecidas, desde sociedades primitivas até civilizações contemporâneas, manifestaram algum tipo de crença religiosa. Essa universalidade contrasta com o aparente pragmatismo da mente humana, que se destaca pela habilidade de resolver problemas baseados em observações empíricas. Como então reconciliar a crença em deuses e forças sobrenaturais, frequentemente sem evidências concretas, com uma espécie cuja sobrevivência depende de sua capacidade de compreender causa e efeito?
Um conceito fundamental que ajuda a compreender esse fenômeno é a parcialidade confirmativa, um viés cognitivo que leva os indivíduos a darem maior peso a eventos que confirmam suas crenças preexistentes e a desconsiderar evidências contrárias. Por exemplo, ao ouvir sobre uma criança milagrosamente curada após orações fervorosas, somos propensos a lembrar do evento extraordinário e ignorar os incontáveis casos em que orações não produziram efeito algum.
A sociobiologia oferece uma explicação evolutiva para o comportamento religioso. Segundo estudiosos como Edward O. Wilson e Walter Burkert, a religião é o produto de uma coevolução entre genes e cultura, moldada por necessidades biológicas e sociais ao longo de milênios. Ela surge como uma interação entre capacidades inatas do cérebro humano e influências culturais, desempenhando um papel vital em três áreas principais:
Organização Social: As narrativas e rituais religiosos ajudam a criar coesão dentro de grupos, fortalecendo laços sociais e promovendo o senso de identidade coletiva. Essa coesão aumenta as chances de sobrevivência de comunidades inteiras, especialmente em ambientes desafiadores.
Consolo Existencial: A religião oferece respostas para questões fundamentais sobre a vida, a morte e o significado da existência, proporcionando conforto emocional diante da incerteza.
Vantagem Evolutiva: Traços que favorecem a crença religiosa podem ter sido selecionados ao longo da evolução por promoverem comportamentos que beneficiavam indivíduos e grupos.
Evidências biológicas e comportamentais
Estudos sugerem que a base biológica do comportamento religioso é complexa, envolvendo a interação de vários genes e estruturas cerebrais. Apesar de ainda não termos identificado genes específicos para a religião, observações de comportamento humano e animal fornecem pistas:
- Rituais e Sacrifícios: Assim como alguns animais sacrificam partes de si para sobreviver (como lagartos que perdem a cauda para escapar de predadores), os seres humanos primitivos realizavam sacrifícios materiais ou pessoais para apaziguar deuses ou evitar desgraças. Esse comportamento evoluiu para rituais religiosos mais elaborados.
- Submissão e Limpeza: A inclinação para atos de submissão (como ajoelhar-se) e purificação moral (como confissão ou penitência) tem paralelos em comportamentos de autopreservação observados em outras espécies.
- Impulsos de Pertencimento: A religião também atende à necessidade biológica de conexão social, criando estruturas hierárquicas e redes de apoio que fortalecem comunidades.
Apesar de a religião ser uma constante histórica, sempre houve indivíduos que rejeitaram explicações sobrenaturais, desde ateus ferrenhos até pensadores como Espinosa, que enxergava Deus como coextensivo ao universo e às leis naturais.
Esses descrentes podem representar uma adaptação evolutiva ou uma alternativa cognitiva, lidando com as mesmas questões existenciais através de narrativas mais baseadas em evidências e na ciência.
Talvez os descrentes simplesmente expressem os mesmos impulsos humanos de forma diferente, substituindo o dogmatismo religioso por um humanismo científico e reverência às leis naturais. Ou talvez, como especulado, sejam psicologicamente mais maduros, capazes de enfrentar a realidade da vida e da morte sem recorrer à figura de um Deus paternal.
No fim, a religião e a descrença representam facetas complementares de nossa busca por significado, reflexo de uma espécie que é simultaneamente pragmática, criativa e profundamente inquieta diante do desconhecido.
Inspirado no livro Ateísmo & Liberdade: uma introdução ao livre-pensamento de André Cancian