Antes de retomar minha história do ponto em que parei, gostaria de desfazer, de público, um mal-estar que se criou com alguns leitores baianos. Não sei se existem outros, mas duas leitoras baianas me escreveram reclamando, com razão, da expressão que usei, ao falar de meu ex-marido, que apresentava “um traço de indolência baiana”.
Reconheço ter sido infeliz ao adjetivar o termo “indolência”. Afinal, um traço de temperamento não tem nacionalidade, qualquer um pode tê-lo. É o perigo das generalizações, que logo se transformam em preconceitos difíceis de desgrudar de quem assim foi rotulado. Como a maioria das pessoas, eu também, naquela época, me deixava guiar por impressões superficiais e por julgamentos apressados. É verdade também que eu nada sabia da Bahia e muito menos dos baianos. Só depois de muito tempo é que fiz uma viagem a Salvador e percebi o quanto minha história poderia ter sido diferente se tivesse tido a oportunidade de me familiarizar com a essência daquele povo maravilhoso antes de conhecer I.
Quando tomei o partido de narrar toda a minha trajetória sem omitir nada de meus reais sentimentos e juízos de valores, sabia que estava assim expondo todas minhas fraquezas e ignorâncias. É óbvio que, assim como mudei radicalmente minha maneira de me ver e de ver os outros, faço questão de declarar de público minha enorme admiração pela Bahia e pelo seu povo, que nada tem a ver com minha malograda experiência conjugal.
Correndo o risco de parecer pedante, não resisto à tentação de uma última observação. O termo “indolência” vem do latim “indolentia” e significa “ausência de dor”. Não é engraçado o caminho percorrido pelo significado das palavras? Se o significado original tivesse sido mantido, não deveria ser motivo de orgulho ser tachado de indolente? Quem me dera eu tivesse tido, na minha vida, um pouco mais de “indolência”!
E agora vamos voltar a incorporar aquela Angela recém-separada de I.
“É bom demais para ser verdade. Não estou acreditando ainda que finalmente readquiri o direito de respirar. O perigo não está completamente afastado, mas para todos os efeitos voltei a ser uma pessoa livre. Com as economias dos últimos anos consegui dar uma entrada para comprar um apartamento a uma quadra da casa de minha mãe. Estou trabalhando em três faculdades particulares e acabo de ser convidada pelo meu antigo professor francês a entrar para a Cadeira de Francês da USP.
Meu ex-marido, que para mim ainda representa a figura do bicho-papão, não conhece meu endereço (nem vai conhecer, se depender de mim) e telefone é uma coisa que ainda vai demorar para chegar.
É bom mesmo que eu precise usar todas minhas energias para dar conta do trabalho e dos deslocamentos (ainda não tenho carro). É bom para que não tenha tempo de evocar todos os fantasmas que ainda habitam dentro de mim. Por um lado sinto um enorme alívio, por outro a experiência de viver completamente sozinha, na situação em que me encontro, requer muita coragem. Não posso evitar de sentir sobressaltos a qualquer barulho suspeito. Meu coração dispara como se alguém pudesse invadir minha casa de um momento para o outro.
Voltei para meu grupo de yoga, sinto-me envergonhada porque posso ler no olhar de meus colegas a perplexidade a meu respeito. Sinto-me devedora de meu guru, que teve um papel preponderante no desfecho de minha aventura conjugal. Ao mesmo tempo, tudo o que vivenciei nos últimos anos me faz rever todos os meus conceitos a respeito de tudo, principalmente me faz desconfiar de minhas escolhas, das pessoas que freqüento. O distanciamento das pessoas que formam meu grupo ficou ainda maior. Os conhecimentos esotéricos mal digeridos, ou cegamente obedecidos por medo das consequências, em vez de significarem liberdade, me fazem sentir mais escrava. O rumo que os trabalhos do grupo está tomando, em lugar de me tranqüilizar, me causa mais desassossego.
Não me sinto acolhida, integrada, sinto-me inferiorizada e dependente. Não é isso o que eu estava buscando.
A volta ao seio de minha família aumenta em mim o desejo de reencontrar afetos familiares, de me relacionar com quem fale minha língua, em todos os sentidos.
É muito cedo ainda para pensar num novo relacionamento. Por enquanto estou completamente realizada com meu sucesso profissional e com a reconquistada independência. As aulas nas faculdades absorvem todo meu tempo e minhas energias, e o retorno é absolutamente fantástico.
É um prazer tão grande voltar a exercer minha criatividade na sala de aula, contagiar meus alunos com minha paixão pela literatura, que aos poucos meus recentes traumas cedem o lugar a uma auto-confiança cada vez maior. Minha doença está controlada com remédios, ainda não tenho nenhuma seqüela deformante, posso continuar executando todos os exercícios de yoga, mesmo os mais difíceis.
Também a convivência com meus colegas é muito estimulante, acabo de conhecer um particularmente brilhante, B, de origem italiana, com quem sinto uma enorme afinidade. Além de termos nossas raízes em comum, posso falar com ele em minha língua e, principalmente, beber de sua fonte de conhecimento praticamente inesgotável. O único senão é que ele é muito fiel aos preceitos da igreja católica e jamais poderia admitir um relacionamento com uma mulher separada.
Eu estou completamente deslumbrada com a sua sabedoria e seu charme, quem sabe eu consiga também cativá-lo e fazê-lo rever seus princípios. Realmente seria bom demais se isso pudesse acontecer, mas evidentemente nada nesta vida se conquista sem esforço. Assim como ele é grandiloqüente no campo intelectual, quando se trata de abordar assuntos pessoais se torna impenetrável. Ele cria uma barreira intransponível, é impossível tentar falar das coisas do coração. É também muito temperamental e melindroso, preciso tomar muito cuidado com o que falo. Paciência, dos males o menor, comparando com o que sofri no meu casamento, sinto-me no paraíso.Instaura-se entre nós um sutil jogo de sedução, nada é explicitado, mas também não há uma rejeição declarada. Gostaria de abrir meu coração, desabafar tudo o que tenho represado desde a queda de minhas ilusões, mas não há nenhuma brecha à vista.
Num gesto temerário, decido escrever-lhe uma carta. Espero ansiosamente qualquer sinal de sua parte, mas nada acontece. Preciso saber se pelo menos a carta chegou às suas mãos. Quando encontro coragem para mencionar o fato, recebo uma gélida confirmação do recebimento, e nada mais.
É melhor procurar esquecer meus sentimentos, se quero continuar a usufruir de sua amizade.
Desde minha separação, de vez em quando a lembrança de minha história com M. tem vindo à minha mente, revestida das roupagens mais variadas. A mais freqüente é aquela de um paraíso perdido, um bem que eu não soube manter, que dilapidei por culpa dos meus sonhos de independência. Volta-me à memória a cena daquela noite, quando já estava freqüentando meu futuro marido, em que M. veio me procurar e, pela primeira vez na vida, se humilhou chegando a me suplicar para não deixá-lo, repetindo-me aos prantos que só eu podia fazê-lo feliz. Mas eu estava tão certa da escolha que tinha feito, que permaneci inflexível e fria como uma pedra.
Agora que percebo o colossal equívoco que cometi, fico pensando o que ele deve estar sentindo a meu respeito, depois que ficou sabendo, num encontro casual com meu pai, que eu já estava casada. Não ouso imaginar o que ele me diria se o encontrasse.
Quando estes pensamentos começam a ficar obsessivos, me armo de coragem e decido ir procurá-lo.
Sobre o autor Angela Li Volsi é colaboradora nesta seção porque sua história foi selecionada como um grande depoimento de um ser humano que descobriu os caminhos da medicina alternativa como forma de curar as feridas emocionais e físicas. Através de capítulos semanais você vai acompanhar a trajetória desta mulher que, como todos nós, está buscando... Email: [email protected] Visite o Site do Autor