Quem de nós não gostaria de surgir na memória de nossos melhores amigos, nossos filhos ou nossos parceiros sempre naqueles momentos maravilhosos em que expressamos o melhor de nós mesmos? Ah, que delícia ter deixado apenas marcas positivas da nossa passagem por aqui, não é? Lembra daquele jantar em que você fez todo mundo chorar de rir com suas tiradas engraçadas ou daquela reunião na qual você conseguiu expor suas idéias de forma tão clara, lúcida e pertinente que até seu chefe veio lhe cumprimentar depois ou, ainda, daquela vez em que você apartou com habilidade digna de um mediador da ONU a briga dos seus dois melhores amigos?
Pena que a vida não é feito compacto de jogo de futebol, só com os melhores momentos, os gols mais espetaculares. Nem estou pensando nos tombos que a gente leva não. Estou mesmo preocupada é com aqueles momentos em que somos dominados por sentimentos nada nobres, que nos levam a tomar atitudes das quais invariavelmente nos arrependemos depois.
A raiva, por exemplo, quer coisa mais humilhante? Sem pensar, arrancamos nossas roupas civilizadas e nos atiramos sedentos de sangue sobre nossa presa, seja ela quem for. Exagero? Não acho não. Quem quer que algum dia tenha tido um ataque de raiva sabe do que estou falando...
Estamos vivendo tempos difíceis. Numa destas típicas madrugadas em que os adolescentes povoam as ruas e os pais ficam em casa fazendo as pazes com Deus e esperando que Ele traga seus filhos de volta para casa sãos e salvos, João, meu filho, cortou a passagem de um carro. Sem querer. Coisas do trânsito, facilmente resolvidas com um aceno, desculpe, não foi nada. Total engano. Antes do gesto possível, o outro carro parou e de dentro dele saíram correndo dois rapazes armados com tacos de beisebol. João acelerou e fugiu. Pelas ruas da cidade, fugindo seus 18 anos, num carro. Bobagem, não parece? Afinal, não aconteceu nada com ninguém. Os anjos estavam todos alertas e fizeram bem o seu trabalho. Seguraram pelo pescoço meu filho e seu amigo, os dois rapazes raivosos e afastaram com mãos invisíveis todos os inocentes que poderiam se meter no caminho destes carros que voavam pelas ruas escuras. Que sorte, hein? Não sei não.
Não paro de pensar nesta raiva que surge do mais banal dos acontecimentos e se expressa com tanta violência. O que teria acontecido se aqueles tacos de beisebol tivessem sido utilizados?
Num livro que deveria morar na nossa mesa de cabeceira, chamado A Arte de lidar com a raiva, o Dalai Lama conta um historinha deliciosa. Um eremita vivia sozinho nas montanhas. Certo dia um pastor passou pelo refúgio do ermitão e perguntou-lhe o que estava fazendo ali no meio do nada. O eremita respondeu: Estou meditando sobre a paciência. Silêncio. Passado um bom tempo, o pastor virou-se para ir embora e gritou: Ah, antes que eu me esqueça, vá para o inferno!!! E imediatamente, o eremita furioso replicou: Ora, vá você para o inferno!!! Rindo, o pastor seguiu seu caminho, não sem lembrar ao solitário que a paciência precisava antes de tudo ser posta em prática...
Como tantas histórias budistas, esta traz verdades profundas escondidas atrás de uma aparente simplicidade. Primeiro, ficamos sabendo que nossa paciência e tolerância estão sendo testadas a cada passo que damos. Vamos lá, confira você mesmo as chances que teve hoje de estourar com alguém ou com alguma coisa!
A raiva do ermitão nos faz perceber também que a paciência não é virtude que se desenvolva na solidão. Ao contrário, ela nasce do convívio. Um rabino um dia me disse: “Não existe desenvolvimento espiritual fora do mundo. A gente precisa ser sábio aqui no meio dos homens, vivendo com eles, sofrendo com eles. Pular fora é fácil, mas não é para isto que estamos aqui”!
Conclusão: você pode ficar anos sem ver nenhuma criatura nem sofrer nenhuma contrariedade. No minuto em que você puser os pés no mundo de novo os gatilhos que fazem detonar sua raiva vão estar lá, ao alcance do seu dedo.
Lidar com a raiva. Será possível? O Dalai Lama explica que a paciência e a tolerância “derivam da capacidade de permanecer firme e inabalável, de não se deixar sufocar pelas situações ou condições adversas”.
Nada a ver com sinais de fraqueza, passividade ou falta de entusiasmo. Coisas de gente débil, que aceita tudo. Não. Ao contrário, paciência e tolerância são sinais de força de caráter. Pessoas que exercitam a tolerância e a paciência - adverte o Dalai Lama - mesmo que vivam em um ambiente agitado e estressante, conseguem manter a calma, a serenidade e a paz de espírito.
Repararam no verbo exercitar? É isso mesmo, estes estados de alma são alcançados se você se acostumar a praticá-los. Simplesmente.
Praticar a paciência, no entanto, seria um exercício vazio, se não fosse a compaixão. É ela que dá força e razão de ser para nossa vontade de melhorar e de contribuir para um mundo melhor. “A compaixão pode ser aproximadamente definida como um estado da mente que é não-violento, não-prejudicial, não-agressivo”, avisa o Dalai Lama, e completa: “nós possuímos de forma inerente este potencial ou base para a compaixão, assim como a natureza humana básica e fundamental é a gentileza”.
E para começar, vou pegar agora mesmo estes dois versos do Guia para o Modo de Vida do Bodhisattva, do sábio Shantideva, e pendurá-los na porta da minha geladeira.
“Qualquer coisa que me aconteça não vai perturbar minha alegria mental;
Por me fazer infeliz, não realizarei o que desejo e minhas virtudes vão definhar”.
"Por que ser infeliz com alguma coisa que a gente pode consertar? E de que adianta ser infeliz com algo que não é possível remediar”?
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM. Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma. Email: [email protected] Visite o Site do Autor