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Gulodices...

Gulodices...
Publicado dia 4/20/2005 2:57:31 PM em Espiritualidade

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Nem sempre comer demais esteve na lista negra das faltas humanas. Ao contrário, embora São Paulo fale de gente “cujo deus é o estômago”, na Epístola aos Filipenses (3, 19) a lista definitiva dos sete pecados capitais, dos quais a gula é o segundo, nós herdamos dos teólogos da Idade Média.

Foi São Tomás de Aquino quem relacionou os sete pecados chamados capitais: orgulho, gula, avareza, luxúria, preguiça, inveja, raiva. E são capitais porque deles nascem outros e outros e outros. São Tomás, na sua Suma Teológica explica que a grande característica desses pecados não é sua gravidade, mas “é que eles são extremamente desejáveis, tanto que por eles um homem comete muitos outros pecados”.

A cada vício, os sábios teólogos fizeram corresponder uma virtude. No caso da gula, é a temperança ou a moderação. A gula é nossa incapacidade de praticar a moderação, é comer ou beber muito além do humanamente razoável. A palavra vem do latim gluttire, que quer dizer, engolir. A ênfase aqui é no excesso.

Mas houve um tempo em que os excessos alimentares eram sinônimos de abundância e só. A psicóloga e terapeuta Mônica von Koss, uma apaixonada por tudo que se relacione ao feminino, me conta que para os povos antigos a gordura era símbolo de abundância e existem registros de tribos que engordavam as meninas para que elas conseguissem se casar bem. Mônica lembra também as imensas deusas da fertilidade dos tempos pré-históricos, citando o livro The Language of the Goddess de Marija Gimbutas: “Os símbolos pré-históricos de fertilidade são símbolos de potência, abundância e multiplicação, referentes à perpetuação da vida e à preservação das forças da vida que constantemente são ameaçadas pela morte. São sazonais e representam a natureza que morre e desperta. Os símbolos de fertilidade e gravidez se enraízam no paleolítico, mas com a descoberta das técnicas agrícolas, a deusa grávida do paleolítico foi transformada em uma divindade da fertilidade da terra”.

Preocupada, ela dia que hoje vivemos um modelo cheio de ambigüidades. “Nossa cultura está doente”, diz. “Por um lado, nosso estilo de vida exclui toda a atividade física, estamos doentes de sedentarismo, mas as academias proliferam. A obesidade nos grandes centros urbanos preocupa, mas nossas jovens estão literalmente morrendo de fome, à força de seguir um padrão de beleza impossível imposto pela mídia. Nesse contexto feito de tantas contradições, a obesidade surge como a busca da abundância, sim, e a denúncia de uma falta. Não podemos esquecer que a comida é o símbolo do amor”.

A comida é o símbolo do amor? Às vezes, ao menos, bem que parece. Que o digam as mães, cujo amor há séculos é cozinhado em cuidadosos e delicados banhos-marias ou em açucarados afetos. Na fresca casa da minha avó, criança farta de comida era, por associações inescrutáveis, criança farta de afeição. E pronto, coma o seu mingau e vá dormir, que tudo vai passar, diria ela ou, certamente, alguma das minhas velhas tias (aliás, curiosamente, todas muito magras em meio a tanta comedoria!). E a receita valia para vários tipos de pesares, das dores de dente às dores de amor...

Quando meu avô morreu, as crianças foram mandadas para casa de uma tia que se encarregou do prato generoso de cabelinho de anjo na manteiga, regalou-nos com um pudim de leite bem morninho (a pressa - com certeza - mas que delícia!) e nos ajeitou na cama gigante que cheirava a benjoim. E, depois de contar pela terceira vez a história da Princesa das Sete Saias, ela finalmente profetizou: agora vocês vão dormir que amanhã tudo vai estar bem de novo... Sabem de uma coisa? O dia seguinte não foi tão triste e o outro ainda menos. Entre canecas de leite com mel e pão quente com manteiga as tragédias amornavam e as tristezas tinham sabor menos azedo.

Nina Horta, em seu livro Não é sopa, também lembra destas comidas de alma: cabelinho de anjo na manteiga, canja de galinha, mingau de maizena pintadinho de canela e, acreditem, minúsculos, mas freqüentes cálices de gemada com vinho do porto (era ótimo para crianças fraquinhas ou apenas exaustas de serem crianças num tempo em que crianças viviam correndo para cima e para baixo, feito besouros coloridos!).

Os amantes também aquecem seu amor entre comidinhas e bebidinhas. Não era assim que pedia o poeta Vinícius de Morais? Isabel Allende, que escreveu belos romances, como a Casa dos Espíritos, mergulhou no mundo dos sabores para tornar menos irreal a vida sem sua filha, morta depois de um longo coma, e escreveu um livro, Afrodite, sobre esta combinação - sem dúvida espiritual - de sensualidade e comida. Isabel conta que Cleópatra seduzia seus amantes fazendo-os lamberem seu corpo untado com uma pasta feita de amêndoas e mel. Diz que isto os levava à loucura. Não sei quanto a uma Cleópatra toda lambuzada, mas sem dúvida a mistura de amêndoas e mel parece excelente...

Mas, talvez porque ande cultivando uma vontade secreta de voltar a fazer pão, um pouco para reaprender os tempos da transmutação das coisas, um pouco para afogar as mágoas sovando e socando a massa fofa, um pouco por causa do gosto de saudade, de um-não-sei-o-quê, que todo pão quente sempre evoca em mim, fiquei deliciada com a descrição que a escritora chilena faz dos pães feitos em um mosteiro de Bruxelas (vejam só, nem é em um país assim sensual, feito a Itália!). E como a gula compartilhada é um pecado ainda melhor, convido vocês a saborearem comigo a receita deste “pão”:

“Uma freira sem hábito, com as costas de um carregador de móveis e as mãos delicadas de uma bailarina, preparava o pão em moldes redondos e retangulares, cobria-os com um pano branco mil vezes lavado, e deixava-o repousar junto à janela, sobre uma mesa de madeira medieval. Enquanto ela trabalhava, no outro extremo da cozinha produzia-se o simples milagre cotidiano da farinha e da poesia, o conteúdo das formas adquiria vida, e um processo lento e sensual desenvolvia-se sob aqueles guardanapos brancos que, como lençóis discretos, cobriam a nudez das fogaças (pães). A massa crua inchava em suspiros secretos, movia-se suavemente, palpitava como corpo de mulher na entrega do amor. O cheiro ácido da massa em fermentação mesclava-se ao odor intenso e vigoroso dos pães que saíam do forno. E eu, sentada em um banquinho de penitente, em um canto escuro dessa vasta cozinha de pedra, imersa no calor e na fragrância daquele misterioso processo, chorava sem saber por quê....”.

por Adília Belotti

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Sobre o autor
adilia
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM.
Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma.
Email: [email protected]
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